Apresentação

Este blog é destinado a narrar experiências de pais, de familiares e de amigos de crianças e de jovens com trissomia e, também, dos próprios indivíduos com síndrome de Down. Se constitui também num espaço aberto para compartilhar experiências comuns e, com isso, aprender com as diferentes formas de experienciarmos as relações com esses indivíduos, deles verem o mundo e do modo como o habitam. Para isso, pressupomos que os participantes desse blog se disponham a uma amizade (Philia) que seja suficiente aberta para ver no modo de vida (philosophia) dos indivíduos com Down, uma certa sabedoria (sophia), que nos ajude a pensar o que somos nós na relação com esse outro tão familiar e, ao mesmo tempo, tão diferente do que somos. Acreditamos que essa filosofia Down seja possível, talvez porque a experiencie cotidianamente com a nossa filha Ana Sophia, que transformou efetivamente nossas vidas com sua presença e nos ensinou o quão precioso é conviver com a diferença. Entendemos, também, que além de um espaço de troca da experiência comum, esse blog pode ser um dos locais onde uma comunidade silenciada poderá falar (como já o vem fazendo em outros meios), vencendo a vergonha e o medo para se mostrar a uma comunidade que pouco a vê, salvo por questões de caridade, algumas vezes de direito, mas pouquíssimas vezes como tendo algo a dizer. Talvez, ainda que muito remotamente, este seja um meio de tentar sensibilizar essa comunidade a qual pertencemos, inclusive os profissionais que trabalham com esses indivíduos, para que os vejam de outro modo, com o efetivo valor e dignidade que merecem. Ao menos esta é a ambiciosa proposta de seus criadores: Pedro Angelo Pagni e Neuci Leme de Camargo. E também a nossa modesta herança cultural para Ana Sophia, a quem dedicamos este blog.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Poema "Meninos da Lua????"


A presente postagem da sessão Philia Down é um poema de Dagmar de Mello e Silva. A autora é professora da Universidade Federal Fluminense. Recentemente, escreveu neste blog o ensaio "A menina ..." na sessão Down Sophia. Boa leitura!

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Meninos da Lua????
Dagmar de Mello e Silva
Quem são esses meninos? De onde eles vêm?
Será que tropeçaram na cauda de algum cometa e tombando de estrela em estrela foram cair aqui?
Mas logo aqui?...
A primeira vista o olhar é de estranhamento...
Seus olhinhos puxados, narizes achatados, sorrisos ingênuos um tanto quanto bobos, tudo isso meio mal arranjado numa cabeça pequena, redonda como a lua...
Não deve ter sido à toa a forma escolhida pela natureza...
Ela deve ter tido lá suas razões, ou não seria desrazão?
Estranha também é esta sensação que muitas vezes experimentamos ao nos colocarmos frente a frente com aquilo que não reconhecemos.
Talvez a resposta esteja na voz do compositor, pois não é que Narciso achava feio o que não é espelho?
Quem sabe se assombrados e assombradores aceitassem o convite e se deixassem guiar pelas mãos de Alice...
Rompessem com os reflexos dos espelhos que só reproduzem a mesmice...
Atravessassem as fronteiras das margens que cerceiam as multiplicidades...
E mergulhassem no fluxo das correntezas de um rio que desemboca nos confins da Lua...
Lá onde vivem os poetas, os loucos e os sonhadores... Aqueles que conseguem ver um Homem imponente em sua armadura com um penacho vermelho em seu elmo...
De capa e espada montado em seu belo cavalo branco combatendo bravamente o dragão da normalidade
Talvez assim...
Deixando se levar pela fantasia, pelos sonhos, pela imaginação que dão sentido a vida...
Nós nos permitiríamos embrenhar-se por espaços/tempos dentro dos quais chove ...
Chove diferentes possibilidades de ser o que quisermos ser...

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Down Sophia (A menina)


O ensaio que apresentamos nesta postagem  se chama "A menina..." de Dagmar de Mello e Silva. A autora é Doutora em Educação, professora da Universidade Federal Fluminense e mãe de Rachel. Desfrutem da leitura e bom aprendizado com a diferença!



A Menina...

Menina, esse é para você
[...] Feliz daquele a quem uma asa vigorosa pode lançar às várzeas claras e serenas; aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz, de manhã rumo aos céus liberto se distende. Que paira sobre a vida e sem esforço entende a linguagem da flor e das coisas sem voz!
Charles Baudelaire

É fim de tarde de uma quarta feira de cinzas, o tempo está nublado e os ânimos parecem combinar com o dia. A mãe está no quarto lendo. A menina se aproxima, deita-se ao seu lado...
Sinto a mão leve, seu toque é tênue, mas intensamente sentido. Rachel percorre meu braço até a cabeça, passa as mãos pelos meus cabelos e me pede um beijo.  Beijo-a levemente nos lábios como costumamos fazer. Chorosa ela comenta: – Mãenão posso te perder...
A mãe também tem esse medo. Dos seus medos, esse a acompanha desde que a menina nasceu. A mãe pensa que todas as mães de pessoas Down deveriam ser imortais. Ela responde para a menina: - Pense nisso agora não.
Vinte e dois de março de 1985. “Por quem os sinos dobram? Por que será que os sinos sempre parecem dobrar por alguém?”...
Eram 7:55 horas da manhã. Os sinos estavam dobrando em meio aquela confusão instaurada no centro cirúrgico. Tudo parecia estar caminhando tão bem. Apesar de ter apenas vinte quatro anos, já não era a primeira vez que vivia uma experiência daquela. Seu primeiro filho nascera há três anos, mas ainda se sentia uma menina e se sentirá assim ao longo de muitos e muitos anos de sua vida. Mesmo quando a vida lhe exigir coragem para enfrentar os percalços que lhe imporá, mesmo assim, a mulher se sentirá uma menina.
Os sinos dobravam disso eu lembro bem...
Assustadoo pediatra segura a criança e questiona sobre a posição da mesa para os exames da recém nascida, ao alcance dos olhos da mãe. A mãe pressente que algo não está bem. Pede para ver a menina e ele lhe mostra de longe. Diz que precisa agasalhá-la, pois está frio e argumenta que depois a mãe poderia vê-la melhor.
A mãe diz-lhe que não. Afinal ela é sua filha e quer vê-la agora. Naquele tempo ela ainda acreditava que os filhos eram das mães.
O médico se aproxima e abaixa um pouco os braços deixando à vista da mãe a menina feia de intensos olhos azuis esbugalhados, amparada por suas mãos. A mãe ainda lembra das aulas de psicologia onde aprendeu a produzir sujeitos. Abre a mãozinha serrada tão comum em recém nascidos e o que vê lhe dá a esperança de que sua intuição se equivocara. Pergunta ao médico se existem mongolóides com mais de uma linha na mão. Os olhares se encontram, mãe e médico se comunicam em silêncio.
Desejei dormir e não acordar mais naquele momento, não consegui...
O outro é aquele que nos interroga quem somos. O problema é quando nos deparamos com um outro que nos apresenta um eu difícil de ser suportado. Talvez esse fosse o maior motivo da insônia da mãe.
A mãe lembra-se do mau presságio no parque de diversões. Naquele tempo, ela acreditava em maus presságios. Estava na fila do carrossel com o primeiro filho. Na frente uma mãe com um menininho mongol (ela ainda chamava-os de mongóis). Um frio percorreu sua espinha... Algo dizia que dali a dois meses ela estaria com um filho “assim”.
Como assim?
A Síndrome de Down ou Trissomia do cromossoma 21 é um distúrbio genético causado pela presença de um cromossomo 21 extra, total ou parcialmente. A síndrome é caracterizada por uma combinação de diferenças maiores e menores na estrutura corporal. Está associada a algumas dificuldades de habilidade cognitiva e desenvolvimento físico, assim como de aparência facial. Pessoas com síndrome de Down apresentam uma habilidade cognitiva abaixo da média, geralmente variando de retardo mental leve a moderado. Um pequeno número de afetados possui retardo mental profundo. É a ocorrência genética mais comum, estimada em 1 a cada 800 ou 1000 nascimentos.(WIKIPÉDIA, 2011)
O teatro está cheio. A mãe está tensa. É sempre uma grande tensão para ela principalmente agora que Rachel cresceu e seu corpo é de mulher. Antes, enquanto criança, tudo era mais fácil. Não quer expô-la, se justifica. Às vezes se interroga se o medo da exposição não é dela própria. Acha que ela tem consciência disso. A menina/mulher entra no palco e dança. Dança como sempre dançou. Seu corpo sabe como expressar o que ouve. A mãe se orgulha e sente-se aliviada. Não consegue deixar de se emocionar quando a vê dançar. Definitivamente ela está sempre a lhe ensinar que a vida está aí para ser celebrada.
Quem é o outro? Essa pergunta passou a acompanhar a mãe ao longo de sua existência. Ela ainda não tem conclusões definitivas. Talvez nunca terá. De uma coisa ela tinha certeza: nem todos os Downs são dóceis como costumava ouvir das pessoas. ‘Dóceis são os cachorrinhos de madames!’ Pensava irritada diante de comentários como esse...  Só pensava, mas nada dizia. Sua mãe e sua avó tinham lhe preparado para ser uma mulher educada.
O encontro mais difícil depois do nascimento de Rachel foi o encontro com a avó materna. A velha e distinta senhora, referência de seus valores e modos de estar no mundo. Como olhar de frente aquela mulher, símbolo de vaidade para a família!?  
Desde que nasci, com exceção de seu leito de morte, não me lembro de vovó sem seu Tailleur e broche de camafeu na lapela. Cabelos brancos impecáveis domados por uma redinha quase imperceptível, meias finas e sapato Chanel. Uma dama nos modos de vestir e se comportar. Falava francês, jogava xadrez e debatia os mais diversos temas da atualidade. Bordava e fazia tricot, conhecia óperas e músicas clássicas como deveriam fazer as mulheres educadas de seu tempo. Filha mais nova de uma família de seis irmãos, vovó se orgulhava de sua origem. Menos por uma tradição aristocrática, mas, por se tratarem de intelectuais reconhecidos na sociedade.
Como olhar de frente para aquela mulher. Ela, a primeira neta. Aquela que assumira para si a responsabilidade de atender expectativas que não sabia sequer se eram dela. O que dizer diante daquela mulher que lhe ensinara tanta coisa? Jogar xadrez, ler “Pollyana” e as “Meninas Exemplares”, ter gestos clássicos de uma bailarina... Justamente ela que se sentia responsável por dar continuidade ao que hoje nem ao menos consegue definir o que?! ‘- Desculpe vovó...  Não queria que fosse eu a trazer esse desgosto para a família!’  Silêncio... Avó e neta choram abraçadas.  
O inferno são os outros, já dizia Jean Paul Sartre...
-Mãe eu sou doente?
- Não filha, você não é doente.
- Então porque Guilherme me chama de doente?
-Guilherme é um bobo, não entende que cada um tem seu tempo e o seu é um pouco mais lento do que o da maioria dos seus coleguinhas.
A mãe vai à escola. Tem hora marcada para conversar com a coordenadora pedagógica. Expõe a conduta de Guilherme e pede que esta intervenha. A coordenadora argumenta que Guilherme tem dificuldades de se relacionar com as diferenças e que precisa de tempo para isso. Depois dessa visita a mãe retornará a escola muitas outras vezes até que a própria Rachel ensine Guilherme a se relacionar com as diferenças.
As crianças do terceiro ano estão eufóricas. Vão elaborar um cartão para dar de presente para o dia dos pais. Guilherme prepara o seu com todo capricho. É o primeiro a terminar e expõe sua obra a todos com orgulho. Sua mãe é professora da escola, o que lhe confere certo status entre os amiguinhos. Rachel sai da sala alegando ir ao banheiro e ao retornar traz um recado para Guilherme. - Sua mãe está lhe chamando...
Guilherme retorna irritado com a mentira. Olha para sua mesa e constata que a menina picou em pedaços o cartão que ele tinha preparado com tanto capricho. Queixa-se com a professora e quando esta pergunta a menina Down, porque fez isso, ela responde com firmeza: - porque eu sou doente! A menina fez a mãe pensar sem palavras. Não havia porque palavras para pensar. Tudo ali estava dito, no acontecimento.
Dessa vez é a mãe que é chamada à escola. A coordenadora e a professora estão juntas. Dizem que Rachel precisa de uma psicóloga. A mãe pergunta o porquê. Rachel está com dificuldades de se relacionar com sua própria diferença...
Quem é o outro? Seria o outro a medida de nossos olhos?
- Mas o grau dela é fraquinho não é? Ela é quase... normal...
Não ela não é normal, eu não sou normal e não conheço ninguém normal! Abomino os discursos que normatizam modos de ser e estar no mundo. Enquadrando existências em padrões universais, produzindo diferenças anormais e discursos sobre tolerância a “essas” diferenças. Uma sociedade de bonzinhos por suportarem os diferentes que eles mesmos criaram. Sempre que ouço colocações desse gênero lembro-me das palavras de Luis Antônio Baptista: “Cuidado, eles poderão te converter em nome, identidade ou vazio[1]
O Galeria Café é reconhecidamente um gueto de Gays. O evento é de encerramento do carnaval. A mãe leva a filha. O namorado da mãe vai tocar na rua em frente à casa noturna. O som da bateria invade os corpos presentes e como não poderia deixar de ser, Rachel faz aquilo de que mais gosta: dançar. A menina que sonha ser rainha de bateria procura fazer jus ao seu sonho, só que dessa vez ela não será a única. Sua diferença não fará diferença, pois terá que dividir espaço com muitos outros diferentes que também desejam estar no lugar da rainha da bateria.  Go go Boys, gays e meninas de programa se misturam com os moradores do bairro de Ipanema exibindo sensualmente seus corpos sinuosos ao ritmo dos tambores. A menina que costuma fazer diferença perde sua condição de excentricidade. Aqui a diferença não exerce diferença.
A mãe lembra bem das palavras de Núria Perez lidas em um livro de Carlos Skliar[2]: “Trata-se da experiência de viver junto daqueles e daquelas que nunca são o que deveriam ser, pois sempre estão sendo para os outros aquilo que alguém jamais desejaria ser, e bem se sabe que alguém é na medida do desejo dos outros...”
- Uma menina! Uma neta mulher! A avó já sonha com os vestidos de festa, com as apresentações de balé, com as bonecas, com os penteados... Sonha com as brincadeiras que realizará com a nova boneca já que a sua antiga criou vida própria e não se submete mais aos seus caprichos...
Mãe... Você não percebeu nada? Ela não vai poder atender aos seus sonhos. Sua neta não é normal.
Naquele tempo a mãe acreditava na existência de pessoas normais. Achava que as pessoas se encerravam em uma conclusividade.
Um acontecimento imprevisto é o que mais facilmente provoca o pensamento: irrompe na continuidade temporal e atrai nossa atenção. Rompe com nossa tendência a um ser dado. Obriga-nos a começar desde o início. O que já foi pensado é insuficiente para dizer o que aconteceu. É algo que não encontra palavras para ser reconhecido. O pensamento será essas palavras (ZAMBONI, 1996, p. 13)
Quinze horas. A enfermeira comunica a mãe a chegada da criança ao quarto. Não, não era um pesadelo. Ela não iria acordar, pois nem ao menos chegara a dormir. Nada estaria bem. Ela sempre esteve acordada. Era tudo real. A menina estava ali bem na sua frente. Ela teria que alimentá-la. Teria que ser o que sempre foi antes, uma boa menina, agora uma boa mulher. Assumir seu compromisso de mãe era seu dever naquele momento. Afinal, aquele ser estava ali por conta dela.
O médico já havia lhe avisado sobre a dificuldade de amamentar crianças Down. Elas são hipotônicas e essa flacidez também está presente na boca. Daí colocarem tanto a língua para fora. A mãe toma a menina em seus braços e mais uma vez se depara com aqueles imensos olhos azuis esbugalhados. Olhos que tanto encantariam ao longo de sua vida dali para frente, mas ela ainda não sabia dos acontecimentos que a esperavam.
Rachel era muito feinha. Magrinha, magrinha. É certo que Gabriel não nasceu nenhuma belezura e foi ficando bonito depois, mas Rachel... Impossível não se impressionar com tanta feiúra. Seus olhos eram o que mais impressionavam. Eram como duas bolas de gude azuis, mas o que, em princípio, seria um privilégio estético perdia a beleza, pois suas pálpebras superiores ficavam dobradas expondo a face interna avermelhada por vasos sanguíneos. Olhos que me fitavam com tamanha intensidade que me faziam sentir vergonha de meus sentimentos. Aquele serzinho tão frágil, que acabara de nascer, como que se rebelando a uma sina anunciada, agarrou com a boca meu mamilo e sugou com tamanha força que me fez estremecer o corpo. Foi aí que a mãe entendeu que um corpo que resiste é uma resposta ao mundo...
As forças do mundo não cabem numa só pessoa e o mundo não tem paz, ele é nervoso, finito, inventado e reinventado a todo momento. Os que afirmam que dentro de si está o tesouro desejam a paz e o silêncio, e qualquer ruído do mundo incomoda a solidão tecida pela paz. (BAPTISTA, 1999, p.81)
Teatro Municipal de Niterói. O grupo Teatro Novo acaba de se apresentar. Os jovens atores Down estão eufóricos. Acreditam que nessa noite as posições se misturaram (pelo menos a cena quer fazer crer que sim). As fronteiras da alteridade, tão difíceis de serem transpostas, parecem ter se diluído. O público aplaude de pé. Uma pessoa na platéia comenta: - Eu não sabia que eles pensavam!  A mãe ouve o comentário e esboça um sorriso sarcástico. Dessa vez pensa com palavras: - Quem é o outro? Não, as fronteiras nunca estiveram tão bem definidas.
A mãe fica incomodada com o assédio. Todos querem parabenizá-la pelo desempenho da filha. Avista a mocinha conversando com um rapaz alto. Aproxima-se para averiguar de que se trata. O rapaz a cumprimenta perguntando se ela não o reconhece. Diante da hesitação da mãe ele comenta: - Estudei com Rachel. Fomos alfabetizados no mesmo ano. Havia passado por aqui durante a semana e reconheci minha amiguinha de escola no cartaz. Faltei à faculdade para estar aqui. Queria assistir àquela que foi tão importante na minha vida. Queria que Rachel soubesse o quanto ela me possibilitou ser uma pessoa melhor. A mãe se emociona com as palavras do rapaz. E novamente se pergunta: Quem é o outro? Dessa vez uma pista: o outro é aquele que nos confere existência. O problema está na afirmação ou negação daquilo que o outro nos confere.
A menina quer ser cantora. Impossível! Pensa a mãe... Não existe pessoa mais desafinada! A mãe achava divertidas as escolhas e sonhos da menina. Mais tarde ela pode entender porque se sentia tão atraída por pensadores que, como Nietzsche, viveram na dobra, no limite entre o pensamento e a loucura. Lá onde a experiência do pensamento está fora, para além da razão lógica. Onde o pensamento pode ser a experiência de uma subjetividade livre que não se rende à sujeição dos saberes instituídos.
Todo dia pai e filho saem para passear pela manhã. O pai já apresenta sinais do cansaço pelos tempos vividos. O rapaz já aponta os traços que a maturidade imprime com o passar do tempo. Pai e filho caminham muito devagar como se um carregasse o peso da vida do outro. O menino de cinco anos olha para a cena, calado dirige seu olhar para a mãe. É assim todos os dias no horário de entrada da escola, até que um dia o menino toma coragem e pergunta para a mãe: - Minha irmã ficará assim? A mãe diz que está se esforçando para que sua irmã tenha mais autonomia, mas não pode garantir como sua irmã estará no futuro. Amá-la seja como for é o que mais importa.
A menina hoje tem vinte seis anos. A mãe está ansiosa por ver as imagens recuperadas de uma fita VHS onde se encontra sua primeira apresentação de dança, há vinte anos. O olhar de hoje não reproduz as emoções do passado. Na recherche de um tempo perdido o que encontrou foram fragmentos, reminiscências de um tempo sem retorno, e mesmo que esse retorno fosse possível, estaria sob uma condição in memoriam. Compreendeu, então, que o tempo só retorna sob a estética da diferença. Diferença produzida pelos acontecimentos históricos, o que nos impossibilita resgatar as emoções acontecidas no passado.
Impossível trazer à tona as antigas sensações, detalhes, emoções daquilo que foi vivido um dia. Mas, se o passado não pode ser sentido como foi um dia, suas reminiscências permanecem presentes, ressignificando a relação entre a memória de nossos afetos de ontem e hoje, encontro de tempos entrecruzados que se fazem pela diferença, nos levando a entender que o tempo nunca está perdido e que, portanto, não se trata de procurar fixamente nas experiências passadas os sentidos que estão no presente.
A família estava toda reunida. Celebravam os noventa anos de vida da matriarca. A bisavó da menina, a contragosto de seus descendentes, pediu que fizessem uma missa de comemoração. A família aceitou. No banco da frente senta a avó com a menina. A mãe, agnóstica, prefere não participar do ato litúrgico e permanece sentada, observando, em um dos últimos bancos da nave, ao lado de uma das tias. Em sua homilia o sacerdote parece realizar muito mais uma extrema unção pelos noventa anos vividos do que a celebração dos próximos possíveis anos que poderiam estar por vir. Era como se aquele tempo já se bastasse para aquela mulher. No ato da comunhão a menina e a bisavó se aproximam do altar. A mãe esboça o desejo de interceptá-laAfinal ela nunca havia sido iniciada naquele ritual. A tia faz sinal para que ela não interceda, ela recua. O padre coloca a hóstia na boca da menina que, ao grudar no céu da boca, começa a provocar-lhe ânsias de vômito. Antes de acudi-la, a mãe precisa se recuperar do impulso de riso diante daquela situação cômica.
Mais uma vez a menina provocara acontecimento. Diante da força retrógada daquele discurso religioso que proclamava a resignação há um tempo Cronos que devora as intensidades presentes naqueles noventa anos de vida, a menina, simbolicamente, reage e mais uma vez ensina a mãe que é preciso potencializar a vida por acontecimentos que germinem experiências geradoras de múltiplas variações de existir. A mãe lembra-se de uma aula de filosofia em que o mestre comentara: “Nós começamos a jogar moralidade em cima dos acontecimentos [...] tirem a moral dos acontecimentos e coloquem uma Ética. Ética é a potência.[3]
Feira Cultural da Praça Quinze. O Grupo de Teatro vai realizar uma intervenção de rua. Estão aguardando a apresentação de samba acabar. Uma negra bêbada e maltrapilha samba em frente aos músicos enquanto um grupo de turistas fotografa a cena. A música entra na corrente sanguínea da menina. Ela não se contém e aproxima-se da mulher. Começam a rebolar juntas, se dão as mãos e elaboram uma espécie de pax de dieu, se abraçam como um par a valsar. A platéia se espanta, máquinas fotográficas se voltam para aquela cena inusitada, os atores do grupo chamam atenção da mãe: -Você não vai fazer nada? A mãe acha que não há o que ser feito... A música termina e a mulher maltrapilha, bêbada, beija as mãos da menina. Entrega-lhe para a mãe e faz um movimento indicativo com os dedos, comentando que ela só pode ser maluca...
A mulher negra, bêbada, fedida e maltrapilha sabe que faz parte de um grupo de pessoas infames, cujas diferenças extrapolam as diferenças toleráveis. Por isso a menina, burguesa, ruivinha, de olhos azuis, cuja diferença tem sido politicamente tolerável só poderia estar maluca ao ultrapassar as fronteiras interditas de corpos que nunca devem ser tocados.
O lugar era no décimo segundo andar de uma Universidade Pública. Na pós- graduação strictu senso. Lá onde os intelectuais se encontram. A turma de doutorandos daquele ano era composta por quinze pessoas, todos de algum modo ligados à Educação, mas com interesses muito diversos. Aquele dia ficara agendado para uma das alunas apresentar seu projeto de tese sobre Inclusão. A moça que já atuava nessa área em uma secretaria municipal de Educação, apresentava as dificuldades com que se deparava para implementar essa política na rede em que atuava. Após a exposição, uma senhora pede a palavra e comenta: - Não sei por que tudo cai nas costas da Educação! A Educação parece até um despejo de lixo. Tudo pode... Eu realmente não entendo... Um médico escolhe se quer se dermatologista, cardiologista ou não sei mais o que... Já o professor... Esse tem que agüentar tudo. Não tem nem ao menos o direito de escolher o tipo de gente que ele deseja trabalhar. Dessa vez a mãe não consegue se divertir e deixa transbordar sua indignação pedindo a palavra, fala: - Você está muito enganada. Sua colocação não procede! Assim como o médico o professor, também, pode ser especialista em português, matemática, etc... Um médico pode ser cardiologista ou dermato, mas na hora de atender não vai poder escolher o sujeito limpinho, cheiroso, inteligente e coisa e tal. Assim como o professor, o médico é formado para atender gente, e gente é de todos os modos... Fedorenta, piolhenta, com feridas, sarnas, deficiente ou não. Silêncio na sala...
Teatro lotado. Na platéia, os sujeitos normais. No palco, os outros da diferença. Esses outros que precisam existir para que possamos nos situar em oposição a eles. Esses outros que
se não estivessem aqui, não seríamos nada, porque a mesmidade não seria mais do que um egoísmo travestido. Porque se o outro não estivesse aí, só restaria a vacuidade e a opacidade de nós mesmos, a nossa pura miséria, a própria selvageria que nem ao menos é exótica. Porque o outro já não está aí, senão aqui e em todas as partes; inclusive onde a nossa pétrea mesmidade não alcança ver[4].
O silêncio passa a habitar os lugares dos mesmos, dando vez à gagueira daqueles que destroem os mecanismos que sustentam o sistema de convenções lógicas da língua. “São personagens que pertencem a um tipo de existência destinada a não deixar rastro, mas que, quando se encontram com algum tipo de poder, perdem-se de suas trajetórias fugidias, vidas infames que quando se deparam com a luz do poder que as faz falar, cintilam, ganhando corpo e destino[5]”. Personagens que encontram resistência naquilo que Deleuze costuma chamar de gagueira da língua que gera a intensidade, criação, disjunções, e porque nos coloca em constante desequilíbrio, potencializa sentidos com a vida.
Entra em cena uma das atrizes com um boneco embrulhado numa manta, nos braços. Ela está acompanha de outro ator. Seu personagem é o de uma mãe que anuncia para o pai a deficiência de seu filho que acabara de nascer. A gagueira da fala a impede de pronunciar as palavras exatas, mas, uma outra gagueira produz a linguagem que expressa o inexpressível, explica o insondável, o inexplicável. Lúcia, diante de sua dificuldade de fala, vira para a platéia e diz: - Meu bebê é suficiente mental!
Silêncio na platéia... As cortinas fecham e abrem-se novamente. Os atores do Grupo Teatro Novo retornam ao palco após algum tempo, felizes por terem povoado espaços com suas intensidades. Agradecem aos aplausos e somem com o apagar das luzes. E a menina?! Ela está entre eles...
A mãe é professora e anda cansada dos discursos voltados à educação. Discursos que promulgam palavras de ordem sem potência. E porque impotentes não produzem acontecimentos.
A mãe é professora e já anda bastante incomodada com as repetições que não produzem diferenças de fato. Ela queria encontrar um modo de “rachar as coisas, rachar as palavras para atingir as coisas onde elas crescem, naquilo que cria o novo, a atualidade[6]”. Queria encontrar um modo, onde as palavras pudessem tocar suas alunas, futuras professoras, e fazê-las ver as pessoas, para além das palavras sedimentadas que se justificam em vazios e inércias, que produzem os argumentos do despreparo: “-professora eu não estou preparada para trabalhar com essas pessoas!”
A mãe professora queria produzir acontecimento que colocasse as pessoas em movimento – comover – gerar potências, intensidades. Desfocar olhares da falta, que por se manterem enraizados em identidades próprias, não conseguem dissipá-las para fazer aparecer as descontinuidades que nos atravessam.[7]
Tomar a vida por acontecimento é o que mais desejava. Recusar a deficiência como condição condicionante. Romper com os universais antropológicos e assegurar ao ser sua historicidade. Dar-lhe uma história própria, tal como pensou Foucault: “A história efetiva se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que ela não se apóia em nenhuma constância: nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles[8]”.
Com o filósofo aprendeu, também, que o saber não produz efeito quando se restringe apenas a compreender, é preciso cortar. Romper com as amarras de um mundo circundante que nos faz girar em torno de nós mesmos e não leva a lugar algum.
Pensou, então em escrever um livro sobre as histórias dessas pessoas infames. Pessoas toleradas, mas, que nos desejos mais íntimos de nossa sociedade se tornam indesejadas. Exceções nas leis naturalizadas dos homens.
E porque tomadas como exceções, se tornam alvo ora de curiosidade, ora de rejeição. Mas, sempre sob as luzes dos holofotes de um poder que os ilumina na medida de suas sombras inoportunas. Não para fazê-los notados em suas paixões e alegrias, mas para controlar-lhes o transtorno que suas existências provocam ao extrapolarem com seus corpos imperfeitos, as fronteiras das normas que regulamentam as repartições da vida.
A mãe preferiu não escrever o livro sozinha. Resolveu convidar companheiros outros, que por viverem ou terem vivido espaços de uma experiência onde se fundem as fronteiras inefáveis de nossa condição humana, se tornaram testemunhas de relações com a vida que se situam entre o dizível e o indizível; entre o que pode ser dito e o que de fato se diz.
Pessoas que por conviverem ou terem convivido proximamente com aqueles que a história gostaria de apagar de sua temporalidade, podem dar seu testemunho daquilo que se vive, mas, muitas vezes as palavras não dão conta de dizer, da experiência do trágico, aquilo que se localiza na cisão entre o que é possível dizer e o que se diz.
O testemunho como uma efetivação possível, uma possibilidade de dizer que carrega a potência do não-dizível e produz, mesmo que por contornos imprecisos, a possibilidade de uma nova ética[9].
A mãe queria produzir acontecimento, fazer entender o que aprendeu em teoria com Deleuze, mas, muito mais, na experiência vivida com a menina: Uma possibilidade de vida é sempre uma diferença.

Referências Bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
__________.  Infância e história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
BAPTISTA, Luis Antonio.. A cidade dos Sábios. São Paulo: Summus, 1999.
_________ Narrativas infames na cidade: Intersecções entre Walter Benjamin e Michel Foucault. 2008, (mímeo).
________. Walter Benjamin e os Anjos de CopacabanaRevista Educação Especial: Biblioteca do Professor -  n° 7, 2008.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. 
DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: E se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro. DP&A Editores, 2003
ULPIANO, Cláudio. O corpo e o acontecimento. 1989. (Aulas Transcritas). Acesso em: http://pt.scribd.com/doc/56605610/O-Corpo-e-o-Acontecimento-Ulpiano.
ZAMBONI, Chiara. Lo inaudito. In: Diotima. Traer al mundo el mundo: objeto y objetividad a La luz de La diferencia sexual. Barcelona: Icaria, 1996.



[1] (BAPTISTA, 1999, p.81)
[2] (PEREZ, Nuria in: SKLIAR, Carlos, 2003, orelha do livro)
[3] (ULPIANO, 1989)
[4] (SKLIAR, 2003)
[5] (BAPTISTA, 2008, apud FOUCAULT, 2006)
[6] (DELEUZE, 1992)
[7] (FOUCAULT, 1979, p.34).
[8] (Op cit, 1979, p. 27)
[9] (AGAMBEN, 2008)

terça-feira, 16 de abril de 2013

links interessantes

Caro/as amigo/as,

Gostaria de recomendar esta semana um programa: "Síndrome de Down: novos incluídos" que passou há alguns dias na TV/Brasil. Um dos programas mais lúcidos e, ao mesmo tempo, sensível que assisti ultimamente sobre o assunto.

O programa promove uma entrevista/debate com a participação de Zan Mustacchi, médico pediatra e coordenador do Ambulatório de Genética do Hospital Infantil Darcy Vargas; Ana Cláudia Brandão, médica pediatra responsável pelo programa da Síndrome de Down do Hospital Israelita Albert Einstein; e Rosane Lowenthal, mestre e doutora em distúrbios do desenvolvimento. Na entrevista, chama atenção o fato de as duas últimas serem mães de filhos com trissomia - um deles na faculdade -, e de um dos maiores especialistas no assunto, ao falar da inclusão nas escolas, argumentar que essa instituição e as demais crianças têm ganhado muito com o convívio com as diferenças.  O episódio Síndrome de Down: novos incluídos , foi apresentado no programa Brasiliana.org da TV Brasil. Ele também ficará disponível nos links deste blog.

Por falar nos links deste blog, na aba lateral, não deixem de acompanhar, semanalmente, as tirinhas de Flávio Soares, publicadas no site http://www.avidacomlogan.com.br/. Em a vida com Logan o seu autor trata de maneira divertida e poética as aventuras de seu filho,  com Síndrome de Down, em situações familiares. As duas últimas tirinhas são dedicadas à escola. Vale à pena ler!  

Abraços a todo/as,

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Philosophia Down

Esta sessão reúne reflexões e ensaios sobre  filosofias Down, entendido o primeiro termo em uma tradição bem específica da Filosofia, que a compreende como modo de vida ou como uma estilística da existência. Apresenta  descrições, narrativas ou testemunhos com aportes a questões e pontos de vistas filosóficos, artísticos ou científicos sobre a relação com os indivíduos com Síndrome de Down ou outra necessidade especial ou, ainda, diferenças étnicas-raciais, relacionadas ao gênero e a sexualidade, dentre outras.

Inaugura esta sessão um ensaio de um dos criadores deste blog, que será publicado no próximo número da revista colombiana Práxis y saberes: revista de investigaciones y Pedagogía (disponível em: http://virtual.uptc.edu.co/revistas/index.php/praxis_saber/issue/current). E, em breve, fará parte de uma coletânea que está sendo organizada pela Dagmar de Mello e Silva, que reúne vários ensaios de professores universitários que são pais e mães de crianças, jovens e adultos com necessidades especiais.


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Aprendizados com a diferença em uma experiência da paternidade:
do testemunho ao cuidado
Pedro Angelo Pagni

Um dia deitei-me no divã e disse à terapeuta: “Sempre te disse que era uma pessoa afortunada, acho que as coisas começaram a mudar. Minha filha, por quem tanto esperei, nasceu com síndrome de Down.” Algum tempo depois, cerca de um ano, já voltava a me sentir alguém afortunado novamente, talvez, até mais do que antes. Afinal, dizia eu a mesma terapeuta: “Minha filha mudou minha vida, deu-me o que nunca tive – um pouco de humanidade, orgulho do que sou com todos meus defeitos e, principalmente, de ser pai dela, com tudo aquilo que possa ser de diferente”.
Desde que ela nasceu sinto-me em devir e com uma dívida semelhante à dívida para com a infância a qual se refere Lyotard (1997), porém, com uma infância particular a qual procuro saudar por meio de uma escrita e de um gênero de testemunho. Talvez, não saiba muito bem sua origem, tampouco entenda o porquê, mas sinto-me em dívida com o que aprendi com minha filha ao ponto de achar que essa experiência com ela deva ser narrada, pois, mais do que aprender somente com ela pude olhá-la de outro modo a partir das várias narrativas de experiências de pais de crianças e jovens com trissomia, destas mesmas crianças e jovens que ouvi em alguns documentários, todas elas, hoje noto, diferentes da que vivi e vivo.  Mas foi nesse contraste de narrativas que pude pensar e narrar a minha experiência de paternidade, na forma de um ensaio que mistura autobiografia e, como todas do gênero, ficção.
Este ensaio não procura, assim, elaborar o dolo da perda irreparável de uma filha real, como o faz Pierre Péju (2004), nem o luto de uma ideia de filha que se vai elaborando na medida em que se convive com ela, como expresso no início do documentário Do luto à luta de Evaldo Mocarzel, tampouco o processo de autoconhecimento que se vai estabelecendo com o pai na relação com o filho nascido com trissomia, como o romance de Cristovão Tezza (2008), e muito menos se refere ao processo de ver na relação de amizade com alguém tão diferente um encontro que faz com que um amigo se transforme, restabelecendo outros sentidos à sua vida, como estabelecidos no filme Huitième Jour de Jaco Van Dormael. Essas narrativas apreendem um pouco de tudo que narro aqui e de nada do que foi experienciado por este narrador, já que a minha experiência é singular, diferente das demais, se tocando em alguns pontos e se distanciando em muitos outros, mobilizando um pensar mais pelo que difere do que pelo que as identifica e se constituindo em uma narrativa do cuidado.
Essa talvez tenha sido a lógica que aprendi a cultivar na relação com minha filha, a lógica que aprendi com ela e que essas narrativas literárias, documentais ou fílmicas me auxiliaram a ver sentidos outros a essa minha experiência, assim como, imagino, parte daqueles que narram histórias desse tipo, quase autobiográficas, quase ficcionais, quase dramas, quase sem fim, acabam por ela perpassando, ao menos se tiverem alguma abertura e coragem para tal. Embora a coragem aqui seja uma palavra proibida porque é uma narrativa muito mais da insegurança, pensem apenas que aqui se expressa uma tentativa controlar um medo incontido por uma escrita ou por um ensaio similar a outras narrativas, pois, ninguém sabe quantas voltas precisei dar em torno de meu próprio eixo para estar aqui e agora lhes escrevendo, não sem algum receio, alguma vergonha de expor-me e, enfim, disso tudo que caracteriza uma narrativa em que se é testemunho, nos termos de Agamben (2005).

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Na gravidez de minha esposa, acompanhei todos os exames de perto. Estava sendo gestada em ideia e imaginação aquela que, depois que ficamos sabendo o gênero, seria a nossa filha. Muitas conversas ao pé-de-ouvido na barriga, enquanto mexia e remexia sem parar quando ouvia nossas vozes.  Mais do que uma filha gestada na barriga da mãe, depois fui entender, uma ideia de filha estava sendo gerada. Em tal gestação, como diz Peju (2004), eu era apenas o pai, aquele que circula em volta da mãe e do bebe, sem poder de senti-lo fisicamente, sentindo-se prescindível e, no máximo, capaz de sentir toda aquela movimentação numa barriga alheia. Por sua vez, a mãe que traz no ventre a criança, parece também gestá-la duplamente, formando também imagens com as quais, mais tarde, no nascimento, poderá comparar com o bebe real. Assim, minha esposa e eu, de modo distinto, imaginávamos uma feição, um rosto, muito, muito conhecido na ânsia de aguardar o nascimento e ver uma face e um corpo reais.
Talvez, a única coisa certa é que a amaríamos como fosse, como concretamente se apresentasse a nós: gravidez desejada, filha muito amada! Este foi um mantra recitado em minha cabeça, inúmeras vezes, como uma espécie de preparo desse tão aguardado nascimento. Finalmente, o nascimento veio. Um dia antes, quando fomos ao ginecologista, ele disse se queríamos que o parto fosse naquela noite ou no dia seguinte. Pegou-nos totalmente de surpresa. O parto foi no dia seguinte. Depois da notícia do nascimento esta era a segunda vez que sentia medo diante do parto que se aproximava. Achava estranho que, após a ausculta do coração da bebe (já chamada pelo nome), o médico tenha marcado tão rapidamente a cesariana, mas, enfim, estava lá, com máquina e tudo para filmar nascimento tão esperado e alguma consternação com o equipamento na sala de cirurgia.
Os médicos e enfermeira já habituados pouco se importavam. Uma rápida conversa com o médico enquanto vestíamos os aventais, na mesma sala, onde contou rapidamente sobre o tempo de profissão e o número de crianças que havia ajudado a trazer ao mundo, logo, estávamos todos lá prontos para mais uma chegada para a equipe e, especialmente, para um acontecimento em minha vida e na de minha esposa. Filmei tudo o que pude. Vi aquele nenê roxinho sair da barriga da mãe, sem muito choro, senti a emoção profunda de ver chegar ao mundo minha filha, embora um pouco atrapalhado com a câmera e com as lágrimas. Pude tocá-la, depois que tocou a mãe pela primeira vez e, logo, nos foi retirada. Toques inesquecíveis esses que são os primeiros e que ficam marcados em nossa memória. Estranhei tanto silêncio no nascimento, mais ainda certo olhar cauteloso dos médicos que a cercavam, especialmente, do pediatra que até hoje à acompanha. Só ouvi, enquanto filmava, que o cordão estava quase seco e o parto havia sido na hora certa: um dizendo para o outro, vamos encaminhar para exames o cordão. Mesmo assim, pensei comigo que bom...a pressa da consulta ao parto foi boa.
Enquanto minha esposa era levada para outra sala, me aproximei do pediatra e perguntei se estava tudo bem e, então, ele me chamou de lado, para perto de minha filha.  Disse-me mais ou menos o seguinte: “Ela nasceu bem fisicamente, com 49 cem, 2kg800, APGARD 10/9 excelente, porém, há uma suspeita de que tenha nascido com Trissomia do 21 invertido.” A suspeita partia de alguns traços físicos como a forma dos dedos e dos olhos, a localização das orelhas, entre outras, e, o que viemos a saber mais tarde, um sopro cardíaco irregular.
Fiquei mudo, um buraco se abriu sob os meus pés e, pelo que me lembro, a única coisa que perguntei foi se correia risco de morte. A resposta foi a de que não e de que deveria esperar mais um dia para que minha esposa se recuperasse para que pudesse contar-lhe o que estava ocorrendo. Pensei comigo: como pode me dizer algo desse tipo, sem nos conhecer e sem saber que compartíamos tudo um com o outro. Dei alguns passos sem saber o que fazer, coberto de lágrimas e tendo que me conter aparentemente para que encontrasse a minha esposa, e não a preocupasse de imediato, ao menos até chegar ao quarto, quando lhe contaria. Entre o período em que ela aguardava para dar de mamar à nossa filha e o momento de ir para o quarto, fiquei desfilando meu sorriso amarelo e fazendo algo que nunca soube fazer bem: enganar. Antes de ir ao quarto, num dos momentos que pude me afastar, encontrei o obstetra que tentou me tranquilizar e na sua plácida humanidade contou algumas histórias, dizendo que isso ocorre em poucos casos que tiveram o acompanhamento que tivemos, como também poderia ser o contrário. Ouvi com atenção tudo aquilo e disse-lhe que não omitiria nada de minha esposa, no que concordou prontamente comigo.
Recentemente, em uma consulta, o mesmo obstetra revelou a sua admiração pelo modo como, desde o princípio, lidamos com a situação e como cuidamos de nossa filha, o que nos encheu de orgulho, porém, não era essa segurança, tampouco sentimento que tínhamos na ocasião. Aliás, os fantasmas que passaram pela minha cabeça na ocasião foram os mais assombrosos. Faltava familiaridade, distinta do que aquela que tinha com a ideia gestada de uma filha ideal, perfeita e, sobretudo, normal....palavra que ressoava na minha cabeça como a de alguém que precisava expiar uma culpa, ainda que não soubesse de quê.
Ainda na enfermaria próxima à sala de cirurgia, como minha filha não pegou imediatamente no peito, algo que demoraria mais algum tempo (duas ou três semanas), uma enfermeira recomendou que fôssemos levados ao quarto, onde receberíamos o auxílio de uma enfermeira para que minha esposa retirasse o leite para amamenta-la. Aguardei mais um pouco – quase uma eternidade de contenção e sofrimento –, enquanto a enfermeira ajudava a minha esposa com a ordenha, pedi-lhes para sair, dando uma desculpa qualquer.  
Chorei como uma criança na porta do hospital. Chegara a hora de enfrentar pela primeira vez os fantasmas. Indagava-me o que estava acontecendo e a pergunta que ecoava em minha cabeça era o porquê minha filha teria nascido com um “problema” (ainda não sabia que trissomia e síndrome de Down eram a mesma coisa, embora imaginasse vagamente, mas resistisse) e por que nós, minha esposa e eu, seríamos os escolhidos para enfrenta-lo. Quantas vezes, depois, nos meses que se seguiram, não fiz essa pergunta. Um pouco como algo que é uma característica pessoal, esse tom dramático de que os problemas são sempre maiores quando são meus, nossos talvez, mas, agora, pensava eu, tinha motivo para dramatizar. A culpa não foi expiada por ela, mas também deixou de existir muito rapidamente ... já não sentia culpa, somente medo do que teria que enfrentar pela frente. Mas medo de quê eu tinha, penso eu, hoje? Talvez, de ver se perder uma ideia de filha, diante de uma filha real, um luto que alguns pais vivem ao longo dos anos e outros, como eu, vivem em pouquíssimo tempo. Mas esse é um luto de todo pai e de toda mãe. Por que o meu deveria ser diferente? Porque minha ideia de filha que seria normal, perfeita e tudo aquilo que me faltava até então, morrera ali no nascimento de uma filha real, de carne e osso e cujas limitações já vinham com uma qualificação: “suspeita de trissomia do 21”. E, em torno dessa qualificação, se cria toda uma fantasmagoria, gerada pelas imagens e representações a respeito que podem ou não estar relacionadas às experiências provenientes de relações com crianças, jovens e adultos portadores da trissomia ou não, alimentadas pelo imaginário popular. Em meu caso, era uma mescla, já que havia trabalhado, em minha juventude, como professor de educação física de crianças e jovens com esse tipo de necessidade especial, ao mesmo tempo em que, como essa minha experiência estava afundada na memória e quase apagada, vinham os fantasmas de todo imaginário popular, até porque trabalhar como professor, não é o mesmo que ser pai...assim, meus pensamentos vagavam, deixando-me envolver com eles até o ponto de me paralisar em um momento em que tinha que tomar a palavra e partilhar a notícia com minha esposa. 
Não havia tempo para isso, mas se houvesse creio que todo meu pessimismo provinha de ter presenciado um nascimento que, diversamente do que asseverou Hannah Arendt (1993), muito provavelmente não traria nenhuma novidade ao mundo, embora sentisse o peso da responsabilidade sobre minha filha triplicar-se e que imaginasse que os cuidados com ela seriam maiores. Este era um de meus fantasmas: tinha que cuidar sem esperar nada dela, hoje percebo, já que imaginava, dentro do espírito popular mencionado, que minha filha, em razão de suas supostas limitações (e que nem sabia se eram reais), não traria ao mundo a novidade esperada em todo nascimento, sobretudo, daquele em que as crianças trazem ao mundo quando nele ingressam para mencionar uma expectativa de Hannah Arendt (1993).  
O telefone começa a tocar e, tendo que disfarçar, mudo a voz para dizer que está tudo bem aos familiares, algo que somente aos poucos fui dizendo a verdade....mas ainda confuso, queria mais informações sobre o “problema” de minha filha que a essa altura do nascimento já tinha se tornado um problema. Tentei encontrar coragem – logo eu que sempre me achei medroso – e, talvez, tenha-a encontrado naquilo que tinha de mais primitivo e profundo, que tinha construído a ferro e fogo ao longo da vida, sem saber muito bem como. De lá tirei as forças para caminhar em direção ao quarto, respirar, contar a minha esposa o que estava se passando desde o nascimento de nossa filha e me mostrar um pouco mais estruturado para que pudéssemos enfrentar, juntos, o que viesse pela frente.
Na verdade, queria enfrentar tudo sozinho e, talvez, poupá-la de algo que, por mais que quisesse e imaginasse uma saída mais heroica, não seria possível. Deparava-me com uma infantilidade que me imobilizava diante da fantasia de poder resolver tudo sozinho, estampada mais para esconder a profunda sensação de impotência e para amenizar o orgulho ferido em relação a minha eventual autossuficiência do que para enfrentar a situação de frente. Aprenderia, depois disso, a pedir ajuda a quem se dispusesse e, principalmente, a contar mais com a protagonista desse nascimento e desse acontecimento: minha filha.
A essa altura, minha esposa já suspeitava de algo, mas não imaginava o que poderia ser: chorou muito, enquanto acariciava a nossa filha ao seu lado. Olhava para ela e dizia: como? Tudo o que ela falava e que também sentia, procurava amenizar com argumentos. Ela dizia sentir culpa em razão de termos esperado muito tempo e estarmos com idade avançada, eu argumentava que poderíamos tê-la tido há vinte anos, quando éramos ainda jovens e inexperientes não tendo suporte para aguentar o que passávamos. Ela dizia outras coisas, tentando encontrar uma responsabilidade que não existia, eu argumentava, dizendo que havíamos sido sorteados. Lembrei-me das palavras do médico, regida por certa estatística: “No ano passado, foram seis crianças que recebi com trissomia, todas de mães entre 17 e 34 anos. E isso em uma cidade pequena”. Servia-me bem essa estatística, ao menos para tentar amenizar um sofrimento causado por uma culpa que, naquele momento, em nada ajudaria sentir.
Nem vou falar das culpas aos médicos, porque foram as que rapidamente superamos, ao ponto de continuarmos com os mesmos até hoje. Via, agora, na razão dos argumentos uma aliada para me manter em pé, para tentar de algum modo conter a angústia de minha esposa e, principalmente, para combater tudo que vinha (e como vêm coisas!) impedir o acolhimento da nossa tão esperada filha. Assim, deixamos que o amor falasse mais alto que tudo, sendo simplesmente pai e mãe de uma filha com um nome próprio – que depois, alguns médicos e enfermeiros esqueciam para chamar de “downzinha” e “cardiopatazinha”, dependendo da especialidade, numa clara falta de sensibilidade, que também encontraria em outras famílias de crianças e jovens com trissomia – e, com o apoio da família e dos amigos, enfrentando cada situação e comemorando cada pequena conquista. Contudo, se alguns médicos e enfermeiros têm essa insensibilidade, outros ainda procuram demonstrar a sua humanidade, apelando a motivos religiosos. Algumas enfermeiras disseram-nos, quando nos viram chorar ainda na maternidade: “crianças como essas só nascem para pais especiais como vocês, que se amam e que poderão lhes dar uma boa família”.
Entendia o gesto de solidariedade embutido em cada palavra, mas não nos sentíamos especiais dessa forma, ao contrário, e falamos isso para muita gente que veio nos consolar com essa frase, o que nos preocupava não era se seríamos ou não especiais, mas se estaríamos à altura de ter alguém como nossa filha. Isto, sim, era o que nos pegava e nos amedrontava. Algo que somente foi superado na convivência com ela e, gradativamente, fomos nos sentindo mais seguros como pais, obviamente, com todas incertezas que aturdem os espécimes desse gênero, em relação à educação, ao futuro...ah, o futuro!
Aos poucos, minha razão e o meu inconsciente tramaram-me peças incríveis, ajudando-me a perceber que tinha passado uma vida inteira me preparando para esse acontecimento que vivia nesse momento, por mais que não me sentisse preparado para tal. Vinham em minha memória as aulas de Educação Física que ministrava para classes especiais. Os nomes das crianças com quem trabalhei brotavam em minha cabeça, juntamente com seus rostos e com a pergunta: onde estão Janaína, Rodrigo, José Fernandes, Manoel, dentre tantos outros, cujos traços fisionômicos e gestualidade, se mostravam na feição de minha filha ou, melhor, em uma imagem do que ela seria no futuro.
Algo parecido se passava com a minha esposa. Há pouco tempo havia orientado um grupo de pais de crianças altistas, com trissomia e outras síndromes no Centro de Estudos em Educação e Saúde da UNESP, onde atuava como voluntária. Tinha certa experiência com esse trabalho de orientação psicológica desde 1997. Coincidentemente, os discursos que ouvia aos poucos ressoavam, até porque uma das funcionárias do hospital que servia o quarto em que estávamos instalados fazia parte desse grupo e, quando se aproximava, sem que o soubesse ativava essa poderosa memória inconsciente.
Suspeitava que minha aproximação da filosofia da diferença e temas correlatos não teria sido por acaso, assim como a convivência com meu supervisor de pós-doutorado que virou um grande amigo, daqueles que escolhemos como irmão, que tem um filho com necessidades especial, com o qual convivi por algum tempo. Nesses momentos acreditamos em tudo que queremos e que convém, podem dizer alguns, mas também em tudo que faz algum sentido e que nos faz sentir mais fortes, potentes e, quem sabe, a altura do que nos passa, por mais difícil que isso seja. E, posso dizer, buscava um sentido para o que se passava, tentando tornar útil tudo aquilo que lera, vira e experimentara. Dava-me conta em relação ao que tentei compreender, sem muito êxito, em Deleuze (2000) e que agora encontrava diante de mim, com um nascimento, o de minha filha: um acontecimento. Por sua vez, essa noção me remetia à conferência proferida por um grande amigo (o mesmo que foi meu supervisor de pós-doutorado) em um dos eventos que organizei e que minha esposa – com mais ou menos seis meses de gravidez – e eu ouvimos com muito encantamento como uma celebração da vida, mesmo no momento em que tanto falava da morte (BÁRCENA, 2010).
Enquanto elaborava o luto de uma ideia de filha convivendo com uma criança real e percebendo que esta dependia de cuidados especiais, começava a sentir essa celebração da vida com muito mais vigor do que qualquer representação ou norma, porque proveniente de um encontro e, principalmente, de uma experiência com alguém que me surpreendia e, na relação desarmada com ela, fazia me ver o quanto podia esperar dela, de seu nascimento. Percebia, assim, o quanto me equivocara em relação ao nascimento de minha filha, pois, a promessa de novidade que agora via era mais alvissareira do que a de qualquer outra, implicava numa mudança efetiva se não do mundo, ao menos minha.

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Quando li O filho eterno de Cristovão Tezza (2008), minha filha tinha acabado de nascer e estávamos ainda averiguando com os cardiologistas se teria ou não que se submeter a uma cirurgia para a correção de um defeito cardíaco congênito nas valvas e, segundo dizem os médicos, comum em parte das crianças que nascem com Síndrome de Down.
Não sei se essas foram imagens que me confortaram diante de um espírito tão pouco afeito à religiosidade ou se existe uma racionalidade outra, como depois li nas obras de Foucault (2004) sobre os estoicos. O que sei é que tudo aquilo que estava incorporado a minha experiência me ajudaram a enfrentar essa situação e assumir minha filha não mais como uma ideia, mas uma criança real, que se apresentava diante de mim e, como todas as outras, diferente. Em um único gesto, o do nascimento, minha filha me ensinou o que há uma década vinha tentando aprender com a diferença, tarefa que desde então me dedico todo dia, no exercício da paternidade, surpreendendo e, principalmente, sendo surpreendido por ela.
Esse meu aprendizado se deve também à minha esposa que, diferentemente de mim, com sua percepção aguda descobriu que é melhor deixar que nossa filha mostre-nos as suas potencialidades, até onde pode chegar, do que acreditar na norma instituída e nas teorias de desenvolvimento infantil, que a concebe de modo indiferente. Diferentemente do que narrado em O Filho Eterno de Cistovão Tezza (2008), optamos por não entrar na corrida pela normalidade, como um déficit a ser superado em cada atividade e, enfim, chegar a ser “normal”, talvez, neste caso e em muitos outros, podemos dizer que não é o que queremos para ela e teremos que lutar contra aqueles que querem julgá-la dessa forma.
Resolvemos, sob este aspecto, inverter um pouco as regras desse jogo e olhar mais para ela do que o que se espera para uma criança como ela ou na faixa de desenvolvimento dela, reconhecendo aí uma potencialidade que nos indicará como e o que fazer. E, desde então, temos visto como tem potencialidade – para usar uma expressão que alguns amigos que trabalham com Educação Especial utilizaram na primeira vez que a viram. Isso porque percebemos que, embora desde os dois meses de vida faça estimulação precoce, há uma coisa que é da própria Ana Sophia: um brilho nos olhos que se percebe pulsar a vida e uma força que se vê em cada gesto.
Se isso foi perceptível logo nos primeiros meses, teríamos ainda muito que descobrir e o que enfrentar com ela. Às vezes, ouvindo absurdos de pais de crianças com alguma necessidade especial que, constantemente, nos interpelavam para dizer que tinham “uma criança igual a essa em casa”, até que aprendemos a responder que “não, não, igual a ela não existia, muito menos estava em casa alheia”. Outras vezes perguntavam se não teríamos mais filhos, dizendo de sua própria experiência que só se tranquilizaram depois que o filho ou a filha seguinte nasceu normal, sem se importar se o assunto da normalidade nos incomodava ou não. Isso nos afastou um pouco de reuniões de pais, pois, a conversa que se vê circular em geral nesses ambientes é acerca da normalidade – chamam médicos e especialistas para proferirem palestras acerca de um saber que poderá fazer com que nossos filhos cheguem o mais próximo possível de uma linha chamada normal.
O que sentia e sinto falta é de ouvir como foram pais e mães de crianças e jovens com necessidades especiais, a narrativa de experiências de maternidade e paternidade reais, assim como ouvir essas mesmas crianças e jovens, quem sabe, para conhecer melhor o mundo que vivem e a vida que levam, como mostra brilhantemente o documentário de Evaldo Mocarzel Do luto à luta. Diferentemente de ter buscado esse documentário como fiz com o livro de Tezza (2008), demorei muito para assisti-lo. Fui a um congresso em que esse documentário estava sendo apresentado em seu circuito cinematográfico e arrumei uma série de subterfúgios para não vê-lo. Depois, criei coragem e o comprei. Ficou muito tempo guardado, até que um dia, após ter assistido uma parte do documentário na TV, sem saber o que era, fui assisti-lo.
O reencontro da coragem para assistir o filme ocorreu após um momento que havia tentado mobilizar bastante essa virtude para enfrentar um problema bem mais delicado do que os meus medos e uma situação que colocava em risco a vida de minha filha. Ana Sophia tinha nascido com um problema cardíaco congênito, um sopro ou, na linguagem médica, um defeito nas valvas. Minha esposa e eu andamos de médico em médico em busca de uma resposta que indicasse a desnecessidade de correção cirúrgica. Contudo, todos davam a resposta era quase a mesma, a cirurgia era necessária e deveria ocorrer no quinto mês de vida de nossa filha. Em cada vez, foi como se fosse a primeira, aquelas palavras  chegavam aos meus ouvidos em um tom ensurdecedor, que me levavam ao desespero, e para fugir disso, punha minha imaginação para funcionar, como faz toda criança que, ao se proteger do mundo, cria o seu em que coisas impossíveis podem acontecer.
Gostaria de trocar de lugar com ela, mas não era possível: a síndrome ficou uma coisa muito pequena diante da cirurgia que iria enfrentar. Isso ocorreu no mesmo período em que recebi uma notícia profissional das mais gratificantes: tinha conseguido uma bolsa em reconhecimento pelo meu trabalho. Depois de muitos anos de solicitação, recebi essa notícia no momento menos esperado e, poderia dizer com tranquilidade, prescindível. Pensava com a indignação de sempre, sinto orgulho de ter alcançado esse mérito, mas, se fosse possível, trocaria essa conquista profissional, que tanto busquei, por qualquer coisa que amenizasse o sofrimento de minha filha. Contudo, nada disso era possível, só me deu a dimensão de minha impotência sobre o arranjo dessas coisas e que uma coisa nada tinha a ver com outra, salvo pelo fato de perceber que o que dava valor atualmente não era mais o mesmo nem se restringia ao reconhecimento pelo meu mérito profissional. Agora, o que estava em risco era a vida de minha filha.
O temor em perdê-la foi algo que me acompanhou nesse período, devo assumir, ao ponto de resistir a tudo que me afastasse muito de minha filha, ao mesmo tempo em que as imagens que habitavam minha cabeça e tentavam reverter o estado de impotência sentida ocupavam meus pensamentos: os problemas profissionais ficaram pequenos. Dos problemas aos compromissos já assumidos, o que me importava era ver minha filha bem, levando uma vida sem limitações e livre do risco de morte, algo que fez com que redimensionasse minha vida e as pretensões na carreira a qual havia escolhido.
Foi no vínculo que estabeleci com ela, o da paternidade mesma, construído no dia-a-dia, que me senti mais apto para enfrentar a situação e para confiar profundamente nela, na vontade de vida que lhe saltava os olhos. Em contrapartida, encontrei no gesto de muitas pessoas da família, de amigos e de colegas de trabalho de vários lugares, estados e países uma solidariedade tamanha e sincera, que me fez voltar acreditar que, se a vida intelectual não era mais a mesma, ainda havia nela pessoas que a habitavam. Via se processar uma esperança na universidade e na política acadêmica, ao mesmo tempo em que me sentida pessoalmente arrasado, limitado, mobilizando quase todas minhas forças para estar ao lado de minha esposa e acompanhar a minha filha.
A aflição de minha esposa e a minha eram tanta que, na antessala de cirurgia, momentos antes de entrega-la a uma competente equipe de cirurgiões, em São Paulo, Ana Sophia nos olhou com tanta tranquilidade, enquanto nos debulhávamos em lágrimas, que nos trouxe uma profunda esperança na sua recuperação. Agiu como se tudo passaria bem e a pulsão de vida que brotava em seu olhar nos inspirou a coragem exigida para que enfrentássemos a situação. No período em que esteve internada no Centro de Terapia Intensiva, ouvimos outras histórias, algumas mais complicadas do que a de nossa filha, outras sem diagnóstico, que nos fizeram olhar um pouco mais a nossa volta. Sentíamos certo alívio por ela ter uma síndrome tão estudada e conhecida, que poderia de agora em diante ter os mesmos problemas de todos os pais, se tudo corresse bem na cirurgia. Efetivamente, tudo correu bem. Em poucos dias ela saiu do CTI, em seguida ficou mais um dia no quarto e, por fim, voltou para a casa, sendo que hoje está totalmente liberada para fazer o que toda criança faz, correr, brincar, nadar, e como gosta de nadar.
Dessa experiência ficaram algumas marcas físicas nela: certa resistência a hospitais e pessoas de branco. Em nós, imagens de alguém tão pequena tendo que passar pelo que passou, as noites em claro no CTI, as crises de abstinência de remédios e a agitação constante das noites. Desde então os problemas passaram a ter dimensão que possuem, ao menos assim os julgo, dando-lhes o tamanho que têm. Passei também a desempenhar várias tarefas profissionais ao mesmo tempo e fazer as coisas com um pouco mais de presteza, para que pudesse dedicar maior tempo a minha filha. Não que hoje ela precise desse tempo, mas eu quero dispor-me dele para que possa acompanhar cada passo, ver cada conquista e estar presente em sua vida, ao mesmo tempo em que concentro minhas energias em atividades que diga respeito à experiência, à escrita e à docência que permitam um maior engajamento ético e político.
Em relação à família, os primeiros a chegarem ao hospital, inclusive, para ajudar nas duas primeiras semanas foram minha cunhada e meu concunhado. Era perceptível a tensão no ar e, ao mesmo tempo, certa alegria não desfechada. Foi minha cunhada e, depois, minha mãe que acompanharam, depois, a saga para fazer ela mamar no peito. Quando conseguiu mamar no peito, comemoramos como uma grande vitória, e assim para cada coisa desde então. O primeiro passo, a primeira palavra, o primeiro dia na escola, etc. Desde então, aprendo nessa relação com minha filha a viver a cada dia, comemorando cada conquista e trabalhando para obtê-la, mas, principalmente, aprendo com um tempo diverso, diferente do meu – metido em tantos afazeres e em uma lógica produtivista da universidade – o caro valor da pausa e do ralento, numa melodia que soa bem na medida em que se vê respeitado um ritmo.
Lembro-me quando, após alguns dias na escola, ela aprendeu a diferença entre o rápido e o lento. Começou a cantar uma música lentamente e, de repente, começou gritar e, depois, a cantar mais rápido, mais rápido, numa velocidade extrema que eu mesmo desconhecia. Isso fez com que pensasse: “minha filha estava sendo apresentada ao mundo e, sobretudo, ao tempo que o rege – o da velocidade, e não tinha encontrado qualquer problema nisso, seu ritmo já se misturava com o do mundo, só não sabia julgar se feliz ou infelizmente”. De qualquer forma, essas eram as imagens de alguém que sentia vertigem da velocidade do mundo e via que esta não poderia ser refreada por mim, nem pelas novas gerações que lhe faziam coro e tampouco por minha filha que já começava a adentrar a esse ritmo frenético, distorcendo a sua melodia original.  Será que era mesmo original ou mais um pressentimento que caia por terra? Não sei qual a resposta a essa pergunta, o que sei é que minha filha cujo diagnóstico dos especialistas supunham uma menina mais lenta, agora, estava cantando na velocidade do mundo. Comecei a ver a captura de um tempo pelo de um mundo absolutamente adulto e massificado, para meu desalento, porém, ainda vejo em bons e longos momentos uma temporalidade que lhe resiste, que caracteriza a infância e que ainda não sei quanto durará.
Enquanto isso, tento dar voz a essa minha experiência da paternidade e da relação com a diferença. Se, em outra ocasião recorri aos documentários de Evaldo Mocarzel e ao livro de Cristovão Tezza (2008) para tentar auxiliar a compor meu silêncio e testemunhar minha posição em relação ao assunto (PAGNI, 2010), agora, com esse escrito vejo se abrir outra possibilidade: a de narrar minha própria experiência, testemunhando cada pequeno acontecimento que se passa nessa relação com minha filha e, ao mesmo tempo, engajando-me para lhe auxiliar a ter um lugar no mundo. Mas esse lugar ela terá que conquistar, seguramente, com meu apoio e, muito provavelmente, com meu cuidado, já que essa é minha dívida e, hoje, meu desejo de aprender com a diferença.

Referências
AGAMBEN, G. Homo sacer III: lo que queda de Auschwitz. 2.ed. Valencia: Pre-textos, 2005, V. III.


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