Apresentação

Este blog é destinado a narrar experiências de pais, de familiares e de amigos de crianças e de jovens com trissomia e, também, dos próprios indivíduos com síndrome de Down. Se constitui também num espaço aberto para compartilhar experiências comuns e, com isso, aprender com as diferentes formas de experienciarmos as relações com esses indivíduos, deles verem o mundo e do modo como o habitam. Para isso, pressupomos que os participantes desse blog se disponham a uma amizade (Philia) que seja suficiente aberta para ver no modo de vida (philosophia) dos indivíduos com Down, uma certa sabedoria (sophia), que nos ajude a pensar o que somos nós na relação com esse outro tão familiar e, ao mesmo tempo, tão diferente do que somos. Acreditamos que essa filosofia Down seja possível, talvez porque a experiencie cotidianamente com a nossa filha Ana Sophia, que transformou efetivamente nossas vidas com sua presença e nos ensinou o quão precioso é conviver com a diferença. Entendemos, também, que além de um espaço de troca da experiência comum, esse blog pode ser um dos locais onde uma comunidade silenciada poderá falar (como já o vem fazendo em outros meios), vencendo a vergonha e o medo para se mostrar a uma comunidade que pouco a vê, salvo por questões de caridade, algumas vezes de direito, mas pouquíssimas vezes como tendo algo a dizer. Talvez, ainda que muito remotamente, este seja um meio de tentar sensibilizar essa comunidade a qual pertencemos, inclusive os profissionais que trabalham com esses indivíduos, para que os vejam de outro modo, com o efetivo valor e dignidade que merecem. Ao menos esta é a ambiciosa proposta de seus criadores: Pedro Angelo Pagni e Neuci Leme de Camargo. E também a nossa modesta herança cultural para Ana Sophia, a quem dedicamos este blog.

domingo, 26 de maio de 2013

Philia Down - Comunicação alternativa - Débora Deliberato


Esta postagem nos foi enviada pela amiga Débora Deliberato, professora do Departamento de Educação Especial da UNESP de Marília. Ela convida  aos pais, familiares e profissionais de crianças com necessidades especiais para que propiciem o  direito de acesso destas à comunicação, apresentando uma de suas modalidades. Agradecemos a Debora pela colaboração e desejamos que esse convite nos ajude a olhar distintamente as formas diversas de comunicação.  

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Olá famílias, profissionais, pesquisadores e demais amigos...
Vamos garantir a todas as nossas crianças com necessidades especiais o direito à Comunicação...
No ano de 2009 o Congresso Brasileiro de Comunicação Alternativa teve como tema “Qualquer forma de comunicação vale pena...”.
 A temática foi discutida e as pesquisas permearam a necessidade do olhar para as linguagens alternativas. Ampliar e inserir diferentes possibilidades de ter acesso à linguagem poderá garantir uma Comunicação de qualidade. Tivemos como presente a adaptação da música “Qualquer forma de amar vale pena” dos nossos queridos Milton Nascimento e Caetano Veloso.
Ana Sofia: sei que você adora música. Essa é para você nos ajudar a cantar!!!!
“Qualquer forma de comunicar vale a pena”


    





sexta-feira, 24 de maio de 2013

Down Sophia - Rubens Gripp

Voltando ao universo Down, gostaríamos de apresentar um ensaio de Rubens Emerick Gripp, professor da UERJ e diretor do Grupo Teatro Novo. Nele seu autor narra sua experiência com os atores que dirige em seu grupo teatral, a maioria com Síndrome de Down, evidenciando a capacidade criativa destes, a profundidade estética e compromisso com o que representam e a potencialidade de atuar no mundo de modo a provocar um olhar outro, a desconstruir os preconceitos e a reinventar a vida. Testemunho de um profundo aprendizado com esse outro e de uma persistência em torná-los atores, esse ensaio indica que as pessoas com Síndrome de Down podem atuar e atuam de modo criativo não somente no teatro, como também nos diferentes  cenários do mundo. Bom espetáculo!

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Grupo Teatro Novo: “Olha só quem esta falando[1]!”
Profº Ms. Rubens Emerick Gripp[2]
- Sou suficiente mental!
Lucia Maria Fornero[3]

- Eu não sabia que eles pensavam[4]!
Professora do ensino básico

            Ao receber o convite para narrar minha experiência junto às pessoas do grupo de teatro que coordeno e com as quais partilho grande tempo de minha vida, não sabia bem por onde começar, muito menos como terminar, pois teria que falar de mais de trinta anos de vida e de trabalho no campo da arte com pessoas, como diria Lúcia na epígrafe desse ensaio; “suficientes mentais”.
            Muita coisa foi feita e muita coisa mudou nestes trinta anos, mas quando paramos para analisar, nos damos conta de que pouca coisa, de efetivo, foi realizada em relação à arte com “essas” pessoas que, para os olhos daqueles que não conseguem ver, “parecem não pensar.”
            No convite, mais especificamente, na página de rodapé da carta convite das Professoras organizadoras dessa obra encontrei a citação do filósofo Walter Benjamim que sinalizava a importância de compartilharmos nossas experiências vividas coletivamente para que elas se constituam em um ato político potente. Pois bem, aliado a este enunciado e ao lembrar-me de meu mestre Paulo Freire[5], senti-me desafiado a contar um pouco da história desse grupo ao qual coordeno, compartilhando nossas experiências vividas sobre os palcos pelos quais passamos.
            No livro Educação e Mudança, Paulo Freire se refere a um Homem que está no mundo por sua responsabilidade histórica e fala da possibilidade deste mesmo homem saber-se nele, indagando-nos sobre o nosso compromisso com o outro, principalmente como profissional/professor. Freire nos coloca em desconforto quando nos interroga: quem hoje em dia, pode se comprometer? Ou quem quer realmente se comprometer? Quem é capaz de agir e refletir sobre o outro? Aponta que o verdadeiro compromisso com o outro homem é a solidariedade e não a desumanização.
            Foi inspirado no desafio de me comprometer que me propus a esse relato. Portanto, peço consentimento aos leitores para me referir ao educador Paulo Freire sem necessariamente fazer referências específicas de suas obras já que incorporo dialogicamente, em meu discurso, as palavras desse pensador que tanto me ajudou nesta tarefa...

Oito dias para a criação

            O filme “O oitavo dia[6]” nos conta a história de um rapaz com a Síndrome de Down frente aos infortúnios de seu cotidiano. Fazendo uma referencia alegórica, no início da trama, ao livro do Genesis, o diretor nos apresenta a criação do mundo em sete dias. No primeiro Deus teria criado o céu e a terra. No segundo, a relva e as árvores, no terceiro o sol e a lua. No quarto dia criou os animais, no quinto o homem a sua imagem, no sexto dia a semente, o alimento, no sétimo descansou porque tinha feito sua obra. Mas, e no oitavo? O que nos sugere Jacó Van Dormael com seu título para o filme? Teria o Diretor deixado para nós expectadores a possibilidade de pensar sobre o oitavo dia em diante? Se for essa sua proposta, sob o meu olhar, no oitavo dia - Deus criou os meninos e meninas com Síndrome de Down ou, neles se inspirou, para mostrar ao mundo as diferenças.
            Este poderia ser um bom roteiro para eu começar a minha trajetória de trabalho já que em seis dias os atores do Grupo Teatro Novo montam uma história e no sétimo dia eles a representam para qualquer público. Conseguem esta tarefa com uma energia que transcende qualquer expectativa, o que me leva a acreditar na potencia humana quando esta se coloca comprometida com a busca constante de ser mais.

Quem é este Ator do Grupo Teatro Novo?

            Trata-se de um homem ou uma mulher pouco comum! Em sua maioria com a Síndrome de Down, fato que, para muitos, o faz ser considerado um ser menos, um ignorante, alguém que porta o peso do estigma que sua deficiência intelectual suscita.
            Mas, Paulo Freire, se refere a este homem, ou a esta mulher, e a todos os outros que a sociedade categoriza como ignorantes, como um ser em relação com o mundo, um ser que precisa refletir sobre a sua realidade. Refere-se a esse homem/mulher como um sujeito cognoscente, isto é, alguém que compartilha do privilégio que só a condição humana é capaz, o ato de pensar.
            Pois bem, contrariamente às suposições de senso comum, que estou acostumado a ouvir, os atores e atrizes da Cia Grupo Teatro Novo, parecem ter consciência de que “todo saber se faz através de uma superação constante”. São capazes de inventar situações, criar textos próprios, que eles mesmos representam, “saírem de si e projetarem-se nos outros, de transcender. Distinguir órbitas existenciais distintas de si mesmo.”  São capazes de sofrer, amar, chorar empaticamente, o sentimento alheio.
            Paulo Freire também se refere ao homem/mulher que enche de cultura os espaços geográficos, considerando cultura tudo que é criado por este mesmo homem/mulher. Uma poesia, uma frase, um texto. Diz que é preciso fazer uma cultura que consista em criar e não reproduzir o que está posto. Em diálogo com Freire, entendo que o que temos feito em nosso grupo é dar leveza à vida através da arte. Leveza que se contrapõe ao peso dos determinismos instituídos àqueles cujas condições existenciais de vida fogem aos padrões de uma sociedade que parece “evitar relações e optar pelo simples contato.”
            Ainda com Freire, aprendi que todo homem/mulher tem uma consciência que pode captar o mundo e transformá-lo. Esta consciência da criação e recriação é a que assemelha o homem/mulher a Deus. Um homem/mulher histórico, do seu tempo. O homem/mulher que se identifica com sua própria ação, objetiva o tempo, temporaliza-se, faz-se homem/mulher na história. Se para Deus não existe tempo, posto que está sobre ele, o homem/mulher, ao contrário, está no tempo e abre uma janela no tempo: dimensiona-se, tem consciência de um ontem e um amanhã. (FREIRE, 1979, p. 16).
            Sobre esse cenário, convido o leitor a me acompanhar junto a esses artistas para assistirem como se posicionam nos seus tempos/espaços de criação e quais janelas se abrem quando tentam reinventar novas temporalidades de vida.

A criação de uma peça de teatro – O Vampiro – em oito dias

O primeiro Dia - A chegada dos atores.
            Os atores chegam para o ensaio. Cada um do seu jeito! Uns mais lentos outros mais rápidos e ansiosos. Uns com os pais, como se estivessem desprotegidos, outros desacompanhados demonstrando maior autonomia. São recebidos no grupo de forma acolhedora, inquietos, pois sabem que participarão de um grupo que ao final de um tempo estará produzindo um texto para ser apresentado. O mais importante neste primeiro dia é não deixar que os atores sintam-se sozinhos. Suas idéias, falas, perguntas serão ouvidas e divididas entre todos, mesmo que os participantes mais antigos e falantes desejem que suas opiniões se destaquem. Todos os assuntos passarão por uma discussão crítica, mas, procuramos preservar a dimensão mágico/imaginária do pensamento que possibilita a criação.
            Essa entrada me faz lembrar, mais uma vez, do Professor Paulo Freire quando ele diz que somente o diálogo comunica, com amor, compaixão, esperança, empatia. Principalmente quando propõe que o professor seja alguém acolhedor que precisa ser amoroso, humilde, crítico, confiante, criador e a sala de aula um local onde cada participante se sinta em um universo existencial, mesmo com pouca experiência de vida, de leitura, de escola. Um local em que todos possam dar seus testemunhos e opiniões.
            É preciso gerar um sentimento no qual todos se percebam como parte imprescindível do Grupo, mesmo que este grupo seja desigual quanto aos pensamentos, linguagens e culturas. Mas, que todos tenham um objetivo comum. Estamos falando de um grupo com mais de 30 atores onde aqueles que descompassam o andamento do processo, são questionados pelos demais e chamados a atenção em relação ao comprometimento com o trabalho.
            Para alguns professores que vão nos visitar a fim de conhecer o trabalho, a pergunta que mais os inquieta é como conseguimos estar com tantas pessoas, tão diferentes, no mesmo local. Para esses professores, a dificuldade de trabalhar com dois ou três alunos que diferem do padrão instituído como normal, em suas salas de aula, se torna argumento impeditivo de seu fazer. Respondemos que é justamente por ser um grupo e por sentirem-se parte dele, porque temos objetivos comuns, sonhamos juntos, que, ao final de seis dias, nossa criação poderá ser apresentada ao público. Por isso temos pressa!
            Constantemente nos interrogamos como cada um está se saindo e o que estão fazendo ali! Uma de nossas atrizes, que possui um déficit intelectual que compromete significativamente seu raciocínio lógico, devido a sua síndrome neurológica me diz: “- I Love You” como sinal de que aquele local é amado por ela. Outro ator que ultimamente não quer mais fazer nada em sua casa; não deseja mais ir à escola ou sair de casa, no dia do teatro é o primeiro a levantar, tomar banho, tomar café e apressar a mãe porque estão atrasados. Esta parece ser sua forma de demonstrar seu contentamento com a arte. É o prazer de fazer Teatro! O sentimento de fazer parte de um grupo!

O segundo Dia - O tema.
- Os vampiros estão invadindo o Brasil, sedentos por novas vítimas. Apenas as pessoas que têm um cromossomo a mais poderão combatê-los!

Ao longo da construção do espetáculo, parávamos para pensar de que modo poderíamos transformar nossas idéias em uma historia coerente para ser apresentada ao público. Que diálogos seriam utilizados? Que cenas priorizar? Como faríamos para que muitos atores permanecessem no palco durante pelo menos quarenta minutos, de modo a apreender a atenção do público? Como dar forma inteligível a um espetáculo totalmente improvisado nas suas falas? Como trabalhar o discurso para que aquelas pessoas não fossem percebidas sob os estigmas, da culpa, da punição, da estranheza, da decepção que tão comumente suscitam com suas presenças? Falar do cromossomo a mais que eles portam como algo diferente, mas que não fosse sinônimo de dificuldade, de falta de inteligência, de ignorância?!
Muitas vezes, no teatro, na hora da elaboração e apresentação de uma peça eu lembrava a definição de Fernando Peixoto sobre o que é o teatro; “um espaço; um homem que ocupa este espaço; outro homem que o observa. Entre ambos, a consciência de uma cumplicidade que os instantes seguintes poderão atenuar fazer esquecer, talvez acrescentar". (1980: 09).
Peixoto me faz ver o quanto somos povoados de outros. Nas experiências que, para além da lógica racional, se produz pelos sentidos, no encontro, ou melhor, no atrito de uma subjetividade com outra, gerando múltiplas formas de se recriar realidades e novas concepções de mundo.
Na montagem do espetáculo “O Vampiro”, havia um ator - um homem que carrega consigo o estigma da falta - falando para outros homens cujas faltas não são tão perceptíveis como a dele. Por parte desses que observam, a falta de consciência, a falta de cumplicidade, que nos instantes seguintes poderão se transformar em um acontecimento que não se esquece jamais e que pode ser acrescentado à vida como uma experiência que nos modifica. O primeiro - o ator - se mostra inteiro em palavras, gestos, sem disfarces de sua condição existencial. O segundo - o espectador – tenta disfarçar seu desconforto diante daquilo que vê como falta nesse outro que se expõe sem pudor. O que a platéia não imagina é que em um breve espaço de tempo eles presenciariam cenas onde esses mesmos sujeitos da falta, apesar de todo o atropelo de suas falas, estariam em cena, sem perder sua generosidade com a platéia.
Nós do Grupo Teatro Novo desejamos provocar dúvidas, causar perplexidades e trazer incertezas ao público. Despertar perguntas, e não respostas definitivas sobre o comportamento das pessoas com um cromossomo a mais. Um grupo de teatro que se pretende atuar como dispositivo de educação, rompendo com sentimentos de piedade ou comiseração, apostando nas intensidades e potências da vida.
A preocupação do Grupo Teatro Novo é construir um trabalho com e pela arte, especificamente com o teatro, sem se preocupar com conceitos de natureza moral, acadêmica, publicitária, científica. Mostrar a pessoa com Síndrome de Down pelo seu potencial. Sua qualidade estética. Sua sensibilidade ao representar.
No jogo teatral e no palco, os atores podem ser personagens sem deixar de serem eles mesmos. O médico, que dá a primeira notícia à família sobre o nascimento de uma criança Down. O padre, que apóia à angústia dos pais, a irmã, o professor, o cientista, que descobriu a síndrome genética. Um mosquito da dengue que disputa espaço com um vampiro do mal, um trabalhador comum que corre o risco de ser sugado por ambos, um chefe de família que é explorado pelo patrão.
Os atores experimentam papéis que condizem com suas próprias realidades, como encenar um menino deficiente, uma mãe chata e super protetora, um casal de enamorados apaixonados cujos pais não aceitam o relacionamento, enfim, múltiplas possibilidades e articulações da vida real. Diversas maneiras de compreender o mundo, ampliando a consciência e o pensamento crítico sobre suas vidas.
Lembro de um impasse em que um dos atores pediu a sua mãe que o ajudasse a traduzir seu desejo de ser um mosquito, porque ele não falava com facilidade. Batia os braços como se fossem asas para voar. Seu irmão comentava que ele vivia voando pela casa, encenando o personagem. Essa foi a maneira que esse rapaz encontrou de reivindicar o papel para ele.
O jogo teatral possibilita a recriação da realidade a partir da fantasia, ao mesmo tempo em que transforma a fantasia, o sonho em realidade possível. É no processo de criação que os atores compreendem cada qual o seu modo, a noção benjaminiana do despertar, ou seja, “juntar energia suficiente para confrontar o sonho e a vigília e agir, em conseqüência, sobre o real não só pela força da imaginação pessoal, mas, também pela força da ação coletiva” (Gagnebim, 1994, p. 90). A prática de teatro como exercício de compreensão do mundo, espaço onde as subjetividades se produzem sob a estética da diferença que escapa das imposições universais e opta pelas múltiplas possibilidades de ser e experimentar a vida.
No processo de criação da história e na própria ação dramática os atores podem, através do fictício, olhar para suas realidades percebendo-as não como condição dada, mas como algo que pode ser enfrentado e transformado. Como no caso da montagem em que buscam alternativas para se contrapor ao perigo iminente dos vampiros que assombram a cidade para sugar-lhes o sangue até esgotar suas vidas. O interessante é que a solução encontrada pelo grupo estaria nas mãos de uma Menina Down, justamente por ser “diferente”, pelo cromossoma a mais que esta apresenta em seu sangue e que lhe confere o poder de erradicar o mundo da praga dos vampiros.
Ao longo dos ensaios os atores perguntavam quem seria a platéia que assistiria aos espetáculos. Eu apontava as características de nosso público: professores, estudantes da escola básica, jovens universitários. Conversamos a respeito dos possíveis temas a serem abordados para esse público até chegarmos à questão dos vampiros que sugam nosso sangue. Outras idéias vão aparecendo, logo surge a associação com uma questão de saúde social que estava bastante presente naquele momento; os mosquitos da dengue. Percebo que suas maiores preocupações estão voltadas para o reconhecimento de si mesmos e para a conscientização de valores que consideram importantes para a vida em sociedade. Desta forma, trabalhávamos com o compromisso de apresentar uma peça para um público questionador e exigente.

O terceiro Dia - a formação do elenco
Confesso como parte da equipe de direção do espetáculo, que muitas vezes, tínhamos dúvidas com relação à atuação dos atores. Se eles dariam conta de sustentar a apresentação, em função da complexidade e pela diversidade dos temas a serem tratados; Vampiros, pessoas com mais de um cromossomo, alguém que não poderia gerar um filho. Dúvidas constantes apareciam, relacionadas à peça, quanto a sua condução, visto que se tratava de um público de pessoas que detinha um olhar alheio ao outro ainda impregnado por estereótipos e “tolerância às diferenças”.
De certa maneira, este projeto seria uma experiência nova, que poderia provocar questionamentos coletivos, retirando as pessoas de seu conforto individual, provocado, pelo desconforto dos temas. Uma nova possibilidade estética de se relacionar com a alteridade. As cenas tinham que ganhar vida e sentido por serem teatrais, mas, também, poderiam se perder na apresentação.
Nos ensaios os atores pensavam na intenção do projeto. Esperavam que todos pudessem funcionar como coautores do trabalho, imprimindo o ritmo das cenas que teriam de ser intensificadas visualmente, com os efeitos dramáticos. Desejávamos passar para o público a imagem de potencia que um cromossomo a mais poderia ter. A formação do elenco para o projeto foi de suma importância, porque existia previamente um personagem dentro de cada ator, mesmo que alguns, ainda tivessem poucas experiências em teatro.
Tínhamos um grupo muito diversificado. Aquela seria nossa primeira experiência juntando o Grupo de atores da Cia (pessoas que já me acompanham há alguns anos e, portanto, bastante experientes e com domínio de palco e improviso) com os alunos da oficina. Para esses novos atores, a total falta de experiência dificultou a definição do elenco, por ser um espetáculo totalmente improvisado durante a apresentação. Isto poderia pôr tudo a perder no momento das cenas, no dia da apresentação. A direção do espetáculo, por sua vez, acompanhava os trabalhos querendo ações e cenas esteticamente bem cuidadas, por ser o grupo porta-voz de uma condição específica de vida – a Sindrome de Down..
Todos ajudavam na descoberta de quem poderia fazer melhor os papéis criados pelo próprio grupo. A sensibilidade de cada ator, suas descobertas, os personagens, tudo começava a se solidificar. Os jovens começavam a incorporar seus personagens, como no caso de um ator que, ao fazer o agente de combate a dengue, a partir dos primeiros ensaios, começou a andar com o seu boné na cabeça e não se separou mais dele. Outros atores, mais críticos de seus desempenhos, esperavam a aprovação ou desaprovação da direção do espetáculo para seus papéis, questionando se estavam dando sentido ao texto.
A discussão do problema da deficiência aparecia nos ensaios. A linguagem cênica transportava todo o grupo para histórias passadas de suas famílias, lembravam momentos em que eram pequenos. Sempre observavam algo que fora dito por seus pais, irmãos, vizinhos, como a notícia de seus nascimentos foram percebidas. Em seu depoimento, uma das atrizes relata que o médico da sua mãe, na hora do seu nascimento, disse que ela iria ter uma amiga para o resto da vida. Inseparável dela! Outro ator nos conta que sua mãe falou que ele era igual a uma geléia. Bem mole! E os que, inicialmente, não comentavam nada de suas histórias, passaram a ficar atentos à vida em casa e ao que era dito sobre eles, passando a trazer novos relatos nos ensaios.
Com os repetidos ensaios, os atores foram alcançando maior espontaneidade e consciência de seus papéis. Percebia que a discussão coletiva sobre seus problemas, ao serem tratados pela ótica de suas próprias vivências, possibilitava um maior entendimento dos temas que eram tratados na peça. O trabalho foi complementado com a visita de um ator brasileiro que mora na França, especialista em estudos sobre Vampiros, que se dispôs a ter uma conversa com eles. O encontro rendeu perguntas e explicações. Descrevia para os atores do Grupo Teatro Novo sua visita a Transilvânia, Polônia, como pesquisa de mestrado em arte na França. Um trabalho sobre vampiros. Este encontro foi um dispositivo que povoou de idéias a imaginação dos atores acelerando a comunicação, provocando soluções intuitivas para o processo da criação teatral.
Para os atores com maior dificuldade de compreensão, eram tomados os devidos cuidados na construção dos seus personagens, buscávamos maior entendimento a respeito dos temas a serem abordados. Aproveitávamos cenas que eles assistiam em um programa de televisão sobre Vampiros e dramatizávamos durante os ensaios, pedíamos ajuda aos pais para que realizassem pesquisas em casa, junto aos seus filhos. Não havia muito tempo de ensaio e necessitávamos de uma força extra para que as cenas tomassem a forma de uma história contextualizada. Este era um problema que não pertencia a um ou outro, mas tinha que ser compromisso de todo o elenco, responsabilidade que se impunha a todos para fazer acontecer o espetáculo.
Bakhtin (1992) comenta que “a arte possibilita-me viver várias vidas em vez de uma só, e com isso enriquecer minha experiência pessoal, possibilita-me participar internamente de outra vida, em nome do significado que ela comporta” (p.96).
Isso também acontecia com nossos atores ao lidarem com situações de realidades que, mesmo que não tivessem sido vividas por eles, precisava fazer sentido, e esse sentido só se tornou possível por se disponibilizarem experimentar viver intensamente outras vidas que não eram a deles, enriquecendo suas experiências pessoais e compartilhando os significados com o público.

O Quarto dia - Os ensaios.
No primeiro momento, as discussões dos atores foram fundamentadas com relatos verdadeiros, para que a relação que tinham até então com a proposta do tema, fizesse sentido. Com isso, as mudanças de ordem e sentido foram observadas, uma vez que ao pensarem neles e nos vampiros, distinções de valores tais como de bondade e maldade eram percebidas.
O segundo momento aconteceu com a organização das cenas sequenciadas através de dramatizações, para que começassem a fazer sentido e tivessem início, meio e fim. Uma arrumação nos diálogos para que não ficassem infantis, posto que na história do Grupo, por serem os atores com deficiência intelectual, geralmente, o público criava a expectativa de que iria assistir a um espetáculo destinado ao público infantil, de criança para criança, esquecendo-se de que alguns de nossos atores já estão na faixa dos quarenta anos de idade.
A resposta do público era importante, pois estávamos falando de temáticas sérias, de forma alegre, criativa, sem ser infantilizada. Muitos espectadores já tinham sugerido anteriormente que, por serem os atores deficientes intelectuais, deveriam apresentar peças como: “Os três porquinhos”, “Branca de Neve”, “Chapeuzinho Vermelho” entre outros clássicos infantis. Nossos jovens achavam graça dessas sugestões e até ironizavam.
O terceiro momento foi o de polimento das cenas, para que elas tivessem sintonia com a sonoplastia, o cenário e o figurino. A quantidade de tempo gasto em cada período e etapa dependeria da elaboração das fases e da disponibilidade dos ensaios. Para a Direção, o tempo da compreensão e o tempo da energia eram diferentes nas relações com os atores.
Um período de lapidação na busca de coerência entre as idéias que iam surgindo  e as ações que eram acrescentadas ou retiradas para que não ficassem muito prolixas nas falas. Os atores precisariam saber onde parar com suas falas e como colocar seus corpos na cena.
Com a definição dos papéis, os acontecimentos iam ficando mais claros. Agora a questão era conciliar os desejos de um ou outro ator na disputa dos papéis principais, pois achavam que por dominarem a cena com mais desenvoltura, mereciam maior destaque. Coube, então, à direção do espetáculo determinar o que cada ator deveria representar, distribuindo os papéis de acordo com o tipo físico e a condição de linguagem de cada um. Esse momento de disciplina era premente para que o bolo não desandasse; o tempo de mudar a roupa, o retorno à cena, o colega que estava no palco, à ajuda necessária na organização da trama com a devida deixa, para que os diálogos fluíssem. Tudo era feito em conjunto.
Na apresentação não poderia haver situações que dificultassem a ação do próximo ator, isto porque precisaria ficar bem sedimentada a ação de cada participante. Não poderia ocorrer o risco do ‘apagão’ ou do ‘branco’ durante o espetáculo. A atenção do ator para responder no momento certo, além da exigência de que o tempo dele fosse respeitado para que as falas não se atropelassem na cena. Estes aspectos foram trabalhados de maneira intensa em todos os ensaios. Foi preciso estabelecer compassos de ritmo e desenvolvimento da ação no palco, evitando atropelamentos entre as representações. Os atores tinham que esperar pela deixa do colega na cena, mesmo quando ela não acontecia, ele poderia antecipar as ações improvisando, dando solução ao impasse. Coisas de um bom ator.
O elenco interagia constantemente, mantendo-se em movimento e em transformação para que o espetáculo ganhasse ritmo e velocidade, diminuindo assim as incertezas das cenas. A marcação no palco e o local da interação com o companheiro eram importantes, por isso as cenas eram repetidas várias vezes. Cada ato tinha seu início e seu fim. Uma ação era realizada de acordo com a anterior. A distração normal entre os atores precisou ser compensada por aqueles que já tinham muito tempo de trabalho no palco, ajudando os que eram mais imaturos para o texto. Cada ator tinha o que dizer sobre seu personagem, seu diálogo, sua transposição na cena. Isto funcionava até solidificar bem sua participação no texto. Se algum ator demonstrasse insegurança, era realizado um rodízio com os outros componentes até perceberem a possibilidade de êxito de cada cena. A alegria de conseguirem estar por inteiro no palco era sentida por todos como uma conquista de todo o grupo.
Nos ensaios, para o preparo dos personagens, sempre era levado em conta à singularidade de cada ator, mas, como grupo, havia o consenso e o respeito ao ator que desempenhava o personagem principal, aquele que dava o tom à trama, para não haver distorções. Era respeitado o tempo e a hora de cada participante. Alguns atores funcionaram como líderes, pela capacidade de organização, como acontece normalmente a todo grupo das pessoas.

O Quinto Dia: O Grupo Teatro Novo
No nosso grupo de teatro, o movimento de amizade e aceitação foi muito mais intenso do que a competição. Eles foram amigos de verdade. As situações novas não foram tão ameaçadoras quanto comumente o são. As experiências que causaram ansiedade geralmente foram diluídas nas diferenças e na vontade de estar juntos, porque a vida toda eles estiveram sozinhos nos tratamentos ou na companhia solitária com os seus familiares. O afeto foi o motor que moveu os atores.
O grupo, não se permitiu situações de alheamento, todos tiveram o direito de participar dentro de suas possibilidades. A timidez foi vencida na distribuição dos personagens e todos tiveram compromisso com o trabalho, seja na construção de uma cena, na elaboração de um detalhe ou na idéia para o final do espetáculo a ser dramatizado. Todos participaram e deram sugestões, em vez de decorarem um texto, o que também seria impossível para alguns, porque nem todos sabiam ler.
Uma das meninas, uma atriz muito bela, desejava que o final da peça terminasse com ela em cena, porque queria ser o fechamento, o auge. Propunha cenas envolvendo sua sensualidade e sua capacidade de sedução. Alguns de seus desejos foram aceitos, outros não e ela aquiesceu diante dos argumentos coletivos.
Os atores observavam os parceiros na cena, porque aquele papel poderia ainda ser seu com a continuidade dos ensaios. Os diálogos que seriam definidos com a conclusão da história a ser contada dependeriam do ritmo da história. Eram muitas as sugestões dadas pelos atores e se elas fossem levadas em consideração, em sua totalidade, não daríamos conta de fechar o espetáculo. No texto havia um fio condutor que puxava as outras cenas.
Ainda me lembro de uma de nossas atrizes que por ser iniciante no grupo tinha medo da máscara que caracterizava o vampiro. Olhava desconfiada para as mudanças das máscaras tentando descobrir quem estava por trás delas. Tivemos que realizar uma série de exercícios até que ela perdesse o medo daquela caracterização.
A improvisação foi o recurso usado durante o espetáculo diante da dificuldade de memorização do texto escrito, enquanto os atores eram mais experientes eram orientados a dar as deixas para o mais inexperientes.
Deixar que o pensamento viesse com emoção e tomasse conta dos seus corpos em cena, de acordo com o que estivesse acontecendo no texto, era o esperado. Uma atmosfera agradável precisou ser estabelecida para que terminassem a cena ou conseguissem elaborar suas falas de acordo com a proposta do trabalho. Os figurinos e os adereços ajudavam a incorporar os personagens e a viver o papel proposto, mesmo que fosse possível ocorrer mudanças no rumo da peça.
Em alguns momentos, foi preciso destruir a dependência das palavras prontas para que os corpos dos atores falassem por si, nas cenas. Aos poucos os atores foram se mostrando maduros com a temática que teriam que representar, motivados com suas cenas e com o compromisso com o teatro, fato este, que muito me comoveu, já que se trata de um grupo de pessoas com poucas oportunidades de trabalho e restritos em experimentações de vida fora de suas casas. O teatro, naquele momento, era, sem dúvida, uma das poucas oportunidades de estarem no mundo, sendo vistos e valorizados mesmo diante de condições existenciais incompatíveis aos padrões sociais. Nos últimos ensaios antes da estréia, mesmo que errassem, não eram interrompidos, porque era o sentimento e a ação dramática que impunham ao texto, o que mais importava.
No Grupo as falas nascem da ação e do envolvimento com o que querem passar. O relacionamento entre eles e o interesse em mostrar sua criação coletiva é sempre algo muito forte entre os atores. A consciência daquilo que representam é mais relevante do que a própria memorização, porque cada ator dá vida ao seu personagem de acordo com sua capacidade de elaborar o pensamento, com o texto sendo construído no entendimento das cenas ao longo dos ensaios. O tempo e a intuição dos atores são fundamentais para a percepção do que deve ser apresentado. As expectativas são sempre muitas, em relação à reação da platéia, na compreensão dos seus papéis e na liberdade de criarem em cena aberta.
Na tentativa de desenvolver seus personagens, todo o corpo era posto em alerta. Era necessário focalizar os movimentos, estar atento as marcações do espaço, a luz, ao som. Teriam que passar intensamente suas emoções nos maneirismos faciais e a vitalidade de suas corporeidades deixando fluir sentimentos de medo, raiva, pesar, tristeza, afeição, amor, responsabilidade, respeito, admiração. Sentimentos que tomavam conta dos atores em suas cenas.
O silêncio na cena, com os efeitos de iluminação, som, figurino, música, roteiros, tudo era motivo de cuidado para os atores durante os ensaios. Solucionar problemas na cena, como saídas e entradas, ritmo do espetáculo, fluência na voz, prazer na apresentação, empatia, medo do público, falha do ator, tudo era assumido com responsabilidade. Responsabilidade de todos, manterem o andamento do espetáculo, ajudar na maquiagem, no ensaio com figurino, até o orgulho da resposta da platéia no dia da primeira apresentação.
Discutir os personagens a partir do envolvimento com a vida dos atores, respeitando sentimentos particulares, pessoais, sempre pensando na complexidade intelectual e afetiva de cada ator, era o que norteava o grupo. Quando um ator manifestava seus problemas familiares era encorajado pelos amigos e em cena, víamos esse mesmo ator dar tudo de si, mesmo diante das adversidades que enfrentava na vida real. A responsabilidade que tinham com a platéia no momento cênico, trazendo emoção ao texto, seja através de um olhar ou de palavras, acabava sendo motivo de mobilização da platéia ocasionando novos convites para outras apresentações do grupo.
No jogo dos personagens, era pedido que todos tomassem consciência e cuidado com o colega, exercício de alteridade que ampliava a experiência humana de cada um. Assim, os atores iam descobrindo sensibilidades e permitindo que a emoção tomasse conta do corpo, como no momento em que um dos atores falava que sua vida estava por um fio, contaminando a platéia com a intensidade de sua dramaticidade, impactando o público ao falar em voz alta e firme do seu amor à vida.
Em cena, o GRUPO TEATRO NOVO, estava mostrando ao público novas maneiras de ver o mundo

O sexto dia - A Direção do espetáculo
            Paulo Freire fala do compromisso do professor na educação como um ato de conhecimento, de conscientização, um ato político. Dizia que o Profissional tem que se comprometer com o que faz e com o outro.
            Ao ler Paulo Freire um sentimento acalantou a minha alma, pois pude perceber que através do teatro eu me comprometia com muitas pessoas que passaram e ainda passam pela minha vida. Com toda a certeza essas pessoas, assim como eu, não vão esquecer tão facilmente da nossa experiência.
            Freire fala do verdadeiro compromisso que é a solidariedade com as minorias. Ele, também, dizia que todos os homens/mulheres aprendem porque não estão prontos e não estão acabados. Fala que o homem/mulheres não pode se isolar ou ser isolado, porque precisa saber decodificar o mundo aprendendo com humildade.
            O Mestre nos fala do amor como tarefa do sujeito que não espera retribuições e que não há educação e aprendizado sem amor. Quem não ama não compreende o próximo, não sabe educar. Por isso é preciso ter esperança com todos os homens e mulheres, porque eles são capazes de estar no mundo, saírem de si, projetarem-se, transcenderem-se e recriarem a vida. A educação não pode ser preconceituosa, ingênua, passional, mas sim de diálogo, de análise, de crítica, de princípios. Com ele aprendi que qualquer homem pode responder aos desafios de sua existência. Pode criar valores, idéias, signos e linguagem. Uma vez, um de seus alunos disse-lhe que desejava aprender a ler e a escrever para mudar o mundo, em resposta Freire comenta que ele tinha a escola do mundo. 
            Os alunos do Grupo Teatro Novo estão aprendendo a viver no mundo como atores, sujeitos de si mesmos. Um sentido poético para suas existências.
            Lembro de quando uma das atrizes ao chegar para o ensaio encontrava-se sob recomendações médicas para repouso, posto que não pudesse movimentar um de seus braços devido a um abscesso na axila que a atormentava com fortes dores e febre. Diante de meu questionamento sobre sua persistência em ensaiar respondeu-me: - O Teatro me melhora, me cura! Por isso eu vim...

O sétimo dia - A apresentação.
Este ensaio teve como propósito dar o testemunho sobre o trabalho de um grupo de teatro formado por atores com deficiência intelectual, em sua maioria pessoas com Síndrome de Down, Grupo Teatro Novo, que, por suas condições existenciais deflagram inúmeras representações pré concebidas no imaginário coletivo dos espectadores, mas, ao exercerem a função de atores e produtores de cultura, desconstroem as imagens daqueles que só conseguem enxergar seus próprios reflexos no espelho da vida.
Como testemunha desse trabalho, posso afirmar que ao longo de sua existência, esse grupo, através do teatro, vem sensibilizando seu público para o potencial das pessoas com deficiência intelectual o que tem gerado mudança de olhar sobre esse ator e sua capacidade de fazer arte, quebrando o estigma de que pouco se pode fazer ou de que nada há que se aprender com ele.
Amor-Solidariedade são dimensões estéticas de ver e estar com o outro. Formas alteritárias de olhar que podem ser potencializadas pela a arte e suas diversas manifestações. Os três mil depoimentos colhidos dos espectadores que assistiram ao Teatro Novo, assim como os debates após o término de várias apresentações, retratam o grau de consciência, percepção e comprometimento que nosso trabalho suscita.
Como diretor e coordenador de um movimento de cultura e de inclusão de pessoas com deficiência intelectual nos espaços de arte, iniciado em 1981 na APAE de Niterói com o nome Grupo Sol e mais tarde em 2000 como um grupo de teatro independente com o nome Grupo Teatro Novo, atuando até os dias de hoje, me vi desafiado a dar esse testemunho, na intenção de apontar uma via estética, na qual, a história desse grupo, pudesse contribuir para pensar a Educação “como possibilidade de recriação de espaços/tempos de uma existência mais digna. Uma existência que cria espaços para que homens e mulheres rompam com temporalidades que lhes destituem da possibilidade de olhar para si, de dizer-se ou de “cuidar de si”. Espaços onde o cuidar de si pressuponha o cuidado com o outro conferindo-lhe legitimidade em sua condição existencial.”[7]
O Grupo Teatro Novo, como um grupo que produz cultura, estabeleceu paradigmas, modelos diferenciados para conceitos como reabilitação, educação, arte-educação e arte-terapia, nos quais as pessoas com deficiência intelectual são constantemente enquadradas. Eles reformularam a imagem da pessoa com deficiência fazendo teatro, assim como desmistificaram estereótipos estéticos para a arte. Romperam preconceitos[8], instituindo novos paradigmas, indicando novas perspectivas de cidadania.
A quebra de paradigmas e a ruptura epistemológica acontecem quando se desfaz o viés do senso comum ou mesmo de um cientificismo determinante que caracteriza modos universais do ser normal, negando ao outro sua expressão criadora diante da vida. No Grupo Teatro Novo, essa quebra de paradigmas pôde ser evidenciada todas as vezes em que nossos atores vão ao encontro das pessoas em teatros, universidades, escolas de formação de professores, empresas, seminários, congressos. Quando falam de inclusão, educação no trânsito, sustentabilidade, segurança no trabalho, saúde, gravidez na infância, HIV, reciclagem e as diferenças entre as pessoas.
Sou testemunha de que o Grupo, ao encenar as suas peças, o fez com grande valor estético, compatível com as manifestações culturais de sua época. Como uma Cia de teatro, ocupou espaços nas Universidades e teatros profissionais, porque já tem construída uma bagagem teatral, com um desempenho profissional de qualidade cênica. As apresentações do Grupo modificaram as visões de mundo de muitos espectadores que assistiram aos seus espetáculos, e seus atores, hoje, são considerados agentes de cultura[9], divergindo dos discursos médicos e educacionais compensatórios de que precisavam somente de remédio, educação e proteção.
Os depoimentos escritos pelas pessoas que assistiram aos espetáculos, em sua maioria, registram uma experiência que não será esquecida facilmente.
O Grupo Teatro Novo vem se caracterizando, ao longo do tempo, como um trabalho pioneiro em seu processo de formação e desenvolvimento, estabelecendo com seus atores uma cumplicidade ímpar. Tal estética se dá através de um estado de paixão, um grande gesto de amor entre todos, entendendo que a arte desperta e possibilita formas simpáticas de estar junto e de ver o outro.  Na experiência do Grupo Teatro Novo, as mudanças ocorreram, em um processo, e não por simples acaso como imaginam os observadores. Foram anos de experiência e contato com diferentes pessoas com deficiência intelectual, potencializando suas ações expressivas através das apresentações e vivências cênicas, para que construíssem suas trajetórias de atores, sempre atento ao potencial de cada um a ser descoberto em cada participante.
            Os temas, como no caso da peça O Vampiro, servem de argumento para o entrelaçamento entre as realidades dos atores e a proposta daquilo que desejamos deixar para o público através da ficção. Nos agradecimentos ao público, após o espetáculo terminado, no momento em que abrimos o debate com a platéia, este ator não deixa de ser o agente de transformação não só das condições existenciais de pessoas que tem um cromossomo a mais, mas de todos aqueles que ali estão presentes e se permitem pensar outras relações a partir da diferença.
Os depoimentos das pessoas que assistiram às apresentações do Grupo é uma maneira de reafirmar o impacto deste trabalho. Uma estética que se dá por acontecimento, que toca à alma de quem assiste aos nossos espetáculos.
Nas apresentações, atores e público se confrontaram frente a conceitos que são colocados em questão. Sentimos isso nos vários depoimentos recolhidos após o espetáculo, como este do estudante de medicina Magno:
Todos nós, em algum momento de nossas vidas, já nos deparamos com um jovem, uma criança, um adulto que não se parecia muito com a gente. (...) Assim é o mundo, com perfeitas imperfeições, e eles não são eles, são exatamente como nós, um pouco mais desastrados, um pouco mais dispersos, ou mesmo, um pouco mais confusos... O teatro é uma atividade maravilhosa, dá chance para que outros vejam a capacidade que tem cada um deles, de crescer como ser humano, como membro de nossa sociedade tão discriminadora. Quantas não foram as gargalhadas que esses singelos atores foram capazes de arrancar de nossos lábios, e quantas vezes não se precipitaram lágrimas de olhares ansiosos e felizes com os seus desempenhos... Assim é a arte, capaz de chocar, de criar, transformar a opinião. (2005).
Já no depoimento de Brena, estudante de Medicina, identificamos uma atenção embasada no discurso médico:
A presença de vocês aqui na faculdade de medicina permitiu ter contato com Síndrome de Down. Podemos ver o quanto o paciente com Síndrome de Down é capaz... Pudemos perceber o quanto ainda temos que inovar e desenvolver o que chamamos de terapia convencional. Maravilhosa a interação entre cultura e terapia. É gratificante ver os atores-pacientes felizes com seu tratamento e, mais que isso, com sua profissão. (2005).
A futura médica se refere a eles sempre como pacientes. O caráter médico da cura, o paciente, o doente com sua profissão. “Maravilhosa a interação entre cultura e terapiaÉ gratificante ver os atores-pacientes felizes com seu tratamento e mais que isso com sua profissão”.
No aspecto afetivo, pudemos observar que as pessoas estão cada vez mais distantes dos que não eram seus iguais, não percebendo que as diferenças são importantes. As pessoas se vêem nas diferenças e não nas semelhanças, porque a semelhança é ela mesma. É a diversidade sendo vista como algo patológico, uma doença a ser tratada e curada.
Como diz Lúcia Maria Forneiro, atriz do grupo, a única coisa que lhe falta é saber ler. Ela só sabe escrever seu nome. Lúcia é uma das atrizes mais talentosas do Grupo. Como relatou um menino ao vê-la representar: “Os outros pensam para falar, mas a Lúcia fala pensando”.
Encontramos no depoimento de Cristina, estudante de terapia ocupacional, um posicionamento de parceria:
Achei maravilhoso, vocês mostraram que as possibilidades são infinitas, permitindo que a auto-estima, a dignidade, o desenvolvimento cognitivo, o respeito à iniciativa e cidadania, e muitos outros aspectos possam ser estimulados neste trabalho. Parabéns! (2005).
Luana, pedagoga, expressa sua emoção dizendo que:
Fiquei maravilhada com a possibilidade de vivenciar uma experiência inesquecível. Ri muito e chorei muito. Em uma passagem brusca de um momento para o outro. Foi emocionante poder sentir tantas coisas em tão pouco tempo. Como disse o ator Bruno Gomes do Teatro Novo, chorar e rir, os dois são fundamentais. É o verdadeiro teatro! Parabéns. Quero conhecer mais o trabalho de vocês. (2005).
Luciana, uma espectadora de Niterói, relata:
Me emocionei muito com a peça e com os atores. Tenho uma filha de cinco meses com síndrome de Down e fiquei feliz que ela poderá ter um futuro diferente, após assistir este trabalho. (2005).
Luciana, a partir da experiência com o grupo terá uma nova perspectiva em relação à sua filha, tirando-a da situação de deficiente para a condição de eficiente. Muitos pais de filhos ainda pequenos e com deficiência, ao verem os filhos com 40 anos no palco, conseguem ter esperança e iniciar um novo processo de construção para uma história futura.
Joice, estudante de enfermagem, mudou de atitude depois que assistiu à peça:
Parabéns pelo espetáculo, é lindo, e nos ensina a refletir sobre a nossa própria vida, aprendemos um pouco a viver com a pessoa com Síndrome de Down, que é uma pessoa normal, que só necessita de atenção especial”. Eu faço enfermagem e nunca tinha tido vontade de trabalhar com pessoas que necessitassem de atenção especial e depois de assistir esse espetáculo, me despertou vontade de trabalhar com pessoas com síndrome de Down. Adorei, parabéns. (2005).
Wellington, estudante de educação física, sobre sua ida ao teatro diz:
“É a primeira vez que assisto a uma peça de teatro com PPDs e fiquei muito emocionado com a mistura de humor com realidade. O preconceito do qual eles nos ensinam de forma alegre e como podemos passar pelos problemas como estes no dia a dia”. (2005).
Maria, pedagoga, deu seu depoimento:
Achei muito interessante! Apoio plenamente por saber que através da arte, o ser se expressa, através da expressão há o aprendizado e o crescimento”. Os "normais" também deveriam resolver seus problemas em cima de um palco, seria mais barato, mais divertido e traria muito mais alegria e disposição. A vida seria sem dúvida, muito melhor. (2005).
Vera, estudante, em seu depoimento escreveu: “O espetáculo me deu clareza de que o movimento do corpo não é o limite. A deficiência está na cabeça. Me senti deficiente com um corpo perfeito”. (2005)
Ao ler o depoimento da estudante Vera, me emocionei, pois ela parece ter captado as sensações que tive durante todos estes anos de trabalho com pessoas com deficiência. Eles são eficientes no que fazem, porque fazem com prazer e paixão. O prazer é a mais nobre função do teatro. A paixão está no corpo e na alma.
Como resultado do que viu Tatiana, atriz e dançarina, afirmou:
A única coisa que posso transcrever do que estou sentindo, é que depois daqui preciso ir direto para casa, ficar juntinho dessa sensação que me envolveu com o que vi. É praticamente impossível expressar! Estou emocionada com o que vi! Vocês são lindos! Parabéns. (2005).
Angélica e Aline, estudantes de 12 anos, que acompanhavam os pais em uma das apresentações na universidade, escreveram uma mensagem especial para Lúcia Maria Forneiro:
Lúcia, nós mandamos esta carta para você, dizendo o que nós sentimos, vendo você fazendo teatro. Lúcia, você mesmo tendo essa doença arrasou. Você tem tamanho de criança, mas palavra de adulto. Lúcia nós sabemos que você vai ser uma vencedora, você já é uma vencedora, e nos queríamos agradecer o que você e seus amigos fizeram em apresentar esse lindo espetáculo. Obrigado.
O depoimento das meninas considera que Lúcia, “mesmo tendo uma doença”, tem palavra de adulto, linguagem, é uma vencedora. No nosso imaginário, o que permanece em nossas relações sociais com pessoas que apresentam algum déficit intelectual, é uma espécie de sombra, de mal. Ainda será preciso tempo para que a arte seja realmente transformadora ao ponto de acolher toda e qualquer condição existencial humana. Que os órgãos de Arte, Ministérios da Cultura e Educação considerem uma estética e uma ética das diferenças. Que a falta de simetria, de lógica cartesiana, não seja um problema para a vida. Que as pessoas possam compreender que todo aquele que vive a experiência do teatro abre em si espaço para desfazer seus mistérios, curiosidades e emoções.
O Processo em constante movimento
O grande segredo da produção e continuidade do Grupo Teatro Novo ao longo desses tantos anos, se deve ao fato dos atores poderem olhar para eles mesmos como sujeitos próprios, cada um com sua singularidade, mas mantendo o respeito ao outro, no exercício de fazer teatro
O Teatro foi à maneira que encontramos de fazer acontecer politicamente uma vida ética a partir de uma estética que desconstruísse conceitos socialmente pré-estabelecidos, nos afirmando como sujeitos de linguagem e pensamento no palco da vida.
Por isso, sonho com o dia em que as pessoas que não se consideram deficientes, desejem estar com/no Grupo Teatro Novo, para saberem como construíram seus mundos, e ai sim, descobrirão, que a condição primeira para viver é o amor incondicional. O amor descrito por Paulo Freire.
Os atores Grupo Teatro Novo desejam, somente ser felizes, neste tempo. Tempo de mostrar que o mundo é de todos e para todos!

Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, M.M. Estética da Criação verbal. São Paulo. Martins Fontes, 1992
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança, tradução de Moacir Gadotti, RJ, Paz e Terra, 1979
GAGNEBIM, Jean Marie. A Criança no Limiar do Labirinto. In: História e Narração em W. Benjamin. Campinas, Perspectiva, 1994
GRIPP. Rubens Emerick. Olha Só Quem Esta Falando! Dissertação de Mestrado – Programa de pós-graduação em Ciência da Arte -  Universidade Federal Fluminense,2007.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos teatrais. São Paulo: Perspectiva, 1984.
MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Editora Cultrix Ltda, 1978.
PEIXOTO, Fernando. O que é teatro. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Livraria Brasiliense Editora, 1980.
SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
SPOLIN, Viola. O jogo teatral no livro do diretor. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.
THIOLLENT, Michel. Crítica Metodológica, Investigação Social e Enquete Operária. São Paulo, Editora Polis, 1982.



[1] Ao longo desse capítulo serão apresentados trechos, referências, citações, retirado da tese de mestrado do autor que também é Diretor do Grupo Teatro Novo cujo título é aqui reapresentado.
[2] Rubens Emerick Gripp é psicólogo com mestrado em ciência da arte pela Universidade Federal Fluminense, Presidente do Instituto Teatro Novo, diretor do Grupo Teatro Novo, professor contratado da Uerj (faculdade de Formação de professores). Considero importante destacar que muitas pessoas passaram pelo grupo e atualmente o mesmo conta com a cooperação das atrizes Cristina Guimarães, Mariana Simões, Sara Hanna.
[3] Atriz do Grupo Teatro Novo ao criar um novo conceito para a deficiência intelectual. Conceito esse que tomarei emprestado para me referir aos atores dessa Cia de Teatro.
[4] Depoimento de uma professora da escola básica da rede municipal de educação de Niterói.
[5] FREIRE, Paulo. Educação e Mudança, tradução de Moacir Gadotti, RJ, Paz e Terra, 1979
[6] Diretor: Jaco Van Dormael  - Atores protagonistas: Daniel Auteul e Pascal Duquene
[7] Trecho da carta convite realizada pelas organizadoras do presente livro.
[8] Boaventura de Souza Santos no livro “Introdução a uma Ciência Pós-Moderna”, define preconceito como “O mais amplo possível, de modo a poder incluir o viés, a pré-noção, a pré-concepção, o pré-juízo, a certeza irrazoável, a ilusão, o erro, a distorção e a expectativa irrealista. A dupla ruptura epistemológica é o conhecimento chegar à sociedade para iluminar o senso comum”. (1989: 38)
[9] Citando os autores Michel Thiollent em “Crítica Metodológica, Investigação Social e Enquete Operária”, é possível afirmar que:”É a partir de pontos de vistas ou idéias de valores socialmente determinados que o cientista escolhe o objeto de estudo, seleciona e acentua os aspectos principais, atribui significado aos fatos e as suas conexões. Segundo Max Weber, a objetividade depende do fato de que o dado empírico está constantemente alinhado sobre a idéia de valores que dão sentido aos fatos e controla as implicações delas na representação do objeto estudado”. (1982:42)

domingo, 19 de maio de 2013

Philia Down - Nobuyuki Tsujii toca


Esta postagem foi-nos enviada pela amiga Verónica Pascucci. Ela traz Nobuyuki Tsujii, pianista cego de 25 anos, que toca a "Campanella", composta por Paganini. Os traços orientais fazem muitos dizerem que também tem Síndrome de Down, mas é só a familiaridade fenotípica. Aproveitem, é sublime! 

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Informação - Siga-nos também no facebook

Criamos um grupo no facebook para os seguidores do blog, em razão da nossas dificuldades em  divulgá-lo por aqui. Se preferirem, o grupo tem o mesmo nome do blog, Philodownsophia, e para serem incluídas precisam solicitar amizade com Pedro Pagni. Aos poucos vamos dominando um pouco melhor essas ferramentas (heheh). 
Abraços 

Down Sophia - ensaio Ana Prado

Se deslocando ainda do universo Down e, também, da experiência da paternidade/maternidade, o presente ensaio de Ana Prado traz a experiência da autora, que é deficiente visual, narrando a sua relação com o mundo e consigo mesma. Testemunha um "olhar" outro em um mundo que tanto privilegia a visão em todos os aspectos da vida e de como esse outro que não vê, mas enxerga, se movimenta, se coloca e se mostra, nesse mesmo mundo. Um ensaio que, enfim, nos fez aprender o   quanto em cada gesto, muitas vezes, tratamos o deficiente como incapaz, mesmo com tanta capacidade e potencialidade, e o quanto nos escondemos sob o véu da ação caridosa,  para não mostrar nossa indiferença. Agradecemos a Ana pela contribuição e esperamos conhecê-la em breve! Boa leitura e bom aprendizado com a diferença. 

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"Amar é descobrir que a deficiência do próximo, faz parte do perfeito mosaico humano."
(Douglas Domingos Américo)

- Onde devo escrever o nome da minha mãe? Perguntei à professora que, sentada à minha frente, voltou-se para o aluno ao meu lado e comentou: - Tenho tanta pena dela! E ele, um garoto de 13 anos, como eu aquiesceu: - Eu também! Fiquei sem entender o comentário e pensei: - Será que estão falando de mim?! Mas, pena, por quê? Só por que perguntei onde devo escrever o nome da minha mãe no certificado de “Melhor mãe do mundo”? Só havia feito a pergunta por que não conseguia enxergar a linha. O papel era marfim e a linha de um cinza muito clarinho...
Já se perguntaram de que modo sente uma pessoa cega ou com baixa visão, quando o outro não reconhece, como humano, o seu modo de ver? Constantemente eu me pergunto: qual olhar é lançado a esta pessoa, quando se deparam com um olho esbugalhado, manchado, arregalado, um par de olhos fechados ou mesmo abertos, privados da visão? Minha condição tem me permitido pensar sobre essas questões e perceber que esse confronto desencadeia um desconforto que gera a necessidade de atribuir valor ao humano. Classificá-lo numa condição existencial de menos valor, um valor que o coloca numa condição de "menos humano".
Ah! Quanto revela este olhar sobre o outro! Um olhar julgador, avaliativo, opressor, piedoso! Somos educados para acreditarmos que há uma escala de valores para se classificar o ser humano, cujas referências estão pautadas em parâmetros da sua condição física, intelectual, sensorial. Não basta nascermos de um ser humano para sermos considerados humanos?! É preciso que sejamos normais ou anormais?!
Humano?! Apenas humano?! Não! Somos pessoas "especiais"! Recebemos um adjetivo que aparentemente nos exalta, mas, nos segrega, nos diferencia, nos distancia do "normal".
O anormal não é de natureza diferente da do normal. A norma, o espaço normativo, não conhece exterior. A norma integra tudo o que desejaria exercê-la – nada, nem ninguém, seja qual for a diferença que ostente, pode alguma vez pretender-se exterior, reivindicar uma alteridade tal que o torne um outro. (EWALD, 1993, p.87)
Início dos anos 80. Todos tinham pena de mim! Apesar dos 13 anos, era uma menininha magricela, pele desbotada, corpo de criança, ingênua, retraída, desajeitada e, para piorar: o "Ponto turístico" da escola. Era assim que me sentia, sob olhares voltados para mim, tanto dos colegas como dos professores, seja quando colava o rosto no papel para ler e escrever, ou quando os materiais escolares caíam no chão e eu não os encontrava. Eu chorava no banheiro, encolhida dentro do box.
 “O ser humano que nos gabamos de ser, soube sempre humilhar e ofender aqueles a quem, com triste ironia, continua a chamar seus semelhantes. Inventamos o que não existe na natureza, a crueldade, a tortura, o desprezo. Por um uso perverso da razão, viemos dividindo a humanidade em categorias irredutíveis entre si, os ricos e os pobres, os senhores e os escravos, os poderosos e os débeis, os sábios e os ignorantes, e em cada uma dessas divisões fizemos novas divisões, de modo a podermos variar e multiplicar à vontade, incessantemente, os motivos para o desprezo, para a humilhação e a ofensa”. (SARAMAGO, 1999)
Festa em família. Não me lembro onde nem quando, mas o que ouvi, não esqueci nunca mais: - Deixa ela comigo, pois ela é cega! Eu ainda não era cega. Tinha baixa visão. - Por que não podia brincar com os outros garotos? Só meu primo podia me pegar no pique - esconde. Eu fingia que não ouvia, pois sabia que de nada adiantaria explicar que eu enxergava; - só não enxergava muito bem. Cedo aprendi que na vida tem que ser 8 ou 80, meio termo não existe.
Mas o que é ver? Será que só o nosso olhar é capaz de desenhar o mundo que nos cerca? Porque é tão difícil para as pessoas conceberem outros modos de ver?
Evgen Bavcar professor de filosofia e fotógrafo profissional ficou cego aos doze anos de idade, nos oferece uma possibilidade de resistência ao imperialismo de uma visão oculocentrista. A partir da sua própria experiência com a cegueira aliada à prática da fotografia construiu o conceito de contra-olhar - referindo-se às imagens construídas pelos cegos no processo fotográfico: “(...) os cegos podem, pela primeira vez na história, criar um contra-olhar e sair da passividade insuportável daqueles que são vistos incessantemente, sem poder olhar para eles mesmos”. (Bavcar, 2003)
Dessa forma Bavcar questiona o absolutismo de um modo de ver que valoriza apenas a visão da retina como via única de percepção do real, em nossas sociedades contemporâneas. Nessa mesma obra, esse autor comenta a respeito da experiência fotográfica vivida por um cego:
(...) compreendi que as imagens têm realmente necessidade das trevas, da cegueira real, para aparecerem em toda a sua fragilidade. Por muito tempo observei esse contra-olhar subjacente ressuscitado graças a coragem de uma professora que recusava a predominância do mundo visível, tão nefasta para todos os que não o podem perceber à maneira de todo mundo”. (BAVCAR, 2003, p.103-104)
Primeiro de outubro de 1984. Manhã fria, porém ensolarada. Eu e meus pais nos dirigíamos para o hospital. Eu encarava o sol como se soubesse que estava vendo-o pela última vez. Segurava uma mexa dos meus cabelos longos na direção de seus raios e a via ficar dourada. - Ah, como eu gostaria que os meus cabelos tivessem aquela cor sem precisar da luz do sol! No quarto do hospital, vestia meu pijama de flanela cor-de-rosa que eu tanto gostava! O médico oftalmologista entra no quarto e diz à mãe: - Cubra os pés dela. Estão gelados. Minha mãe abriu o armário e tirou de lá um cobertor com cores vivas e os cobriu. Eu estava assustada, pois sabia que algo estava por vir. Não acredito em premunições, mas, tive, não sei como dizer. Será que foi intuição? Será que adivinhei? Não sei o que foi. Só sei que acertei! Na manhã seguinte, após a cirurgia de emergência no olho esquerdo, o qual ainda havia resíduo visual, ouvi o médico dizer que tudo havia corrido muito bem. No entanto, nunca mais vi a luz do sol refletida em meus cabelos nem as cores vivas de um cobertor. Fiquei cega, naquele dia.
Repouso absoluto, consultas médicas semanais. -A luz está apagada ou acesa? Não sei. O médico, toda semana, vinha com a mesma pergunta e eu com a mesma resposta. Ele não queria acreditar. Nem eu. Foi o fim de uma certa maneira de viver, término de hábitos adquiridos, despojamento de realizações. A perda de formas de relações humanas até então estabelecidas.
As perdas impostas a quem perdeu a visão são múltiplas. Elas se inter-relacionam, elas se sobrepõem umas às outras. Qualquer uma delas é por si mesma grave, intensa e, juntas, constituem as múltiplas limitações que é a cegueira. Cada perda inclui um adeus doloroso. Mas, com a morte do homem de visão, o homem cego nasce. E a sua vida pode ser boa. Entendi que a vida modificou-se, mas não terminou.
Vida de pessoa cega. Tudo novo.
- Como encarar as pessoas que me viram pela última vez, enxergando? Como elas iriam me enxergar?
Com pena, é claro! Medalhinhas de santos, rezas, orações. Nada disso mexia comigo. Sabia que estava cega e para sempre... Meus amigos permaneceram leais, afinal:
- Não se afasta de uma amiga porque se tornou cega!
Logo, percebi que alguma coisa estava forçada. Eles vinham e eram gentis; mas quando iam comentavam entre si:
- Pobre Ana! Está certamente aceitando de modo admirável!
- É penoso vê-la daquele jeito, apesar dela estar confiante.
Compreendi que não era mais Ana, e sim, Ana, a cega.
Sentia que aos poucos, perdia meu lugar na sociedade. Entretanto, é possível que tenha assumido um novo lugar: "Ana otimista - a pobre cega - o exemplo de vida". Perdi meu lugar original. Haviam me dado uma nova “personalidade”, um “novo caráter”.
Para Levinas é no face-a-face humano que se irrompe todo sentido. Diante do rosto do Outro, o sujeito se descobre responsável:
É uma banalidade dizer que jamais existimos no singular. Estamos rodeados de seres e de coisas com os quais mantemos relações. Por meio da visão, por meio do tato, por meio da simpatia, por meio do trabalho comum, estamos com os outros. Todas essas relações são transitivas. Toco um objeto, vejo o outro; mas eu não sou o outro. (LEVINAS, 1982, p.50)
Ensino médio. Sistema de leitura e escrita braille. Colegas me guiando pelos corredores da escola. Provas orais. Ai! Como enxergar faz falta! Os trabalhos em grupo, eu fazia com quem sobrava e, se o professor organizasse duplas, eu poderia ser mais uma, na dupla que me aceitasse. Até que perceberam que a minha cegueira, não me impedia de pensar, problematizar, articular idéias. Começaram a brigar pela minha companhia. Eu???? Sim, agora eu escolhia com quem eu queria ficar.
O trabalho...
 - Trabalhar, pra quê?! A família dela tem dinheiro, Seu pai tem carro importado. Ela nem estudou aqui. Agora quer trabalhar? Diziam pelos corredores.
Foi preciso muita humildade, parceria, interesse, num mundo, até então, desconhecido. Ah, como aprendi a viver com os meus alunos e amigos cegos! Aprendi, principalmente que não "devemos ter medo dos confrontos... até os planetas se chocam e do caos nascem as estrelas" (Charles Chaplin).
- E ainda há gente que reclama da vida! Diz a senhora, sentada ao meu lado, no ônibus que, ora me olha, ora olha a pessoa que está em pé ao seu lado. De novo volta a comentar:
- Gente perfeita: dois braços, duas pernas, enxerga, ouve, fala... E veja está menina: com uma carinha tão boa!
A senhora em pé ao seu lado fala:
 - Que judiação!
- Deus sabe o que faz!
E o assunto vai rendendo... Rendendo... E a minha paciência se esgotando... Se esgotando... Eu estava me sentindo um peixinho no aquário. Ainda bem que se aproximava a hora do meu desembarque. Poucos instantes antes, me levanto e peço licença. A senhora, ao meu lado, me empurra com o braço e grita:
- Onde você vai descer? Segura senão você cai!
Caio sentada no banco, pois ela me dá um empurrão. Peço licença novamente, desta vez, com mais firmeza. O ônibus já estava estacionando para o desembarque e ela, mais uma vez: -- você vai cair de novo! Encho o peito de ar e digo: - Senhora, com licença! Vou saltar aqui! Ela, desesperada: - Aqui é a UERJ! Onde você vai descer? O ônibus volta a se movimentar. Eu, sem poder sair do canto, dou um grito sufocado: -- Motorista, por favor, pare aí! Vou descer. E a senhora: - Onde você vai descer? Não respondo. Empurro a senhora com todas as minhas forças e, aliviada, piso em terra firme.
Por que foi que cegamos?
Não sei?
Talvez um dia se chegue a conhecer a razão.
Queres que te diga o que penso?
Diz...
Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. (SARAMAGO, 1995)
Essas são as palavras com que José Saramago encerra sua obra: O ensaio sobre a cegueria. As palavras do autor português nos interrogam sobre nossas condições existenciais a partir da metáfora do olhar. Diante de um mundo mediado por imagens, Saramago parece querer nos fazer pensar sobre uma outra estética de visão. Talvez a possibilidade de um deslocamento da concepção de olhar, já que o excesso visão dificulta nossa percepção de que o mundo não se reduz somente aquilo a que os olhos alcançam.
Ando ou rodo?!
-- Não passe por aí!
- Venha comigo.
- Ali tem uma rampa. É melhor para você! Diz um homem, me puxando pela alça da bolsa.
- Meu senhor, posso te explicar algo?
- As pessoas cegas não têm nenhuma dificuldade em descer e subir um ou vários degraus.
 E ele insiste, me puxando:
- Já falei aqui é melhor para você! Não vai ter que descer o degrau. Vai só andar!
Puxo a minha bolsa e falo...
 - Senhor olhe para mim! Olhe para os meus pés! Viu? - Tenho pés e não rodinhas. As rampas são feitas para cadeirantes, pessoas com mobilidade reduzida,... Não é o meu caso!
Ele, impaciente, enche o peito de ar e diz cheio de si:
- Aprendi isto na empresa onde trabalho. Um professor falou que as rampas são feitas, pensando nas pessoas com necessidades especiais, inclusive, nas pessoas assim como você, o que evita que caiam.
Tentei argumentar, mas ele me cortou, dando "tchau".
Aqueles que são considerados cegos, isto é, aqueles que não podem perceber o mundo visual através da visão, podem, entretanto, percebê-lo através dos sentidos remanescentes, os quais são estimulados, sensibilizados a partir da necessidade de usá-los para sobreviverem num mundo imagético.
A isto Bavcar chama de vistas táteis. Ver com a ponta dos dedos e ainda, através da audição, do paladar, do olfato. Pela pele é possível sentir o calor do sol, o vento ou o calor do outro. (...) é possível ver o mundo pelos olhos da alma. Este é, no entanto, um olhar incompreendido por aqueles considerados videntes. (MAGALHÃES, 2003)
Churrascaria em Ipanema. Almoço entre amigos. Eu, a única pessoa cega na mesa. Fazemos os pedidos. Entre conversas e risadas, bebemos e beliscamos aperitivos. O Garçom traz os pratos e os talheres. Chega a comida. Hummm!!! O aroma está convidativo! Uma amiga me serve. Agradeço. Pego os talheres e, no momento em que estou levando a primeira garfada à boca, alguém, subitamente, tira o garfo da minha mão e diz:
- Trouxe uma colher para ela. É perigoso ela se machucar com o garfo. Fico sem ação. Atônita. Chamamos o garçom. Questiono:
- Não entendi o porquê da colher?
- É melhor para você!
- Quem te disse que a colher é melhor para mim? Quem sabe o que é melhor para mim, sou eu! Meu senhor, é impossível comer churrasco com colher. Por favor, traga um garfo e retire esta colher.
Carlos Skliar (2003), em Pedagogia (improvável) da diferença, nos fala da existência de dois olhares. Um olhar que parte da “mesmidade” e outro que se inicia no “Outro”, na “expressividade de outro rosto”. Para ele, esta distinção pode ser uma forma de ruptura com o “eu mesmo”, “refúgio do próprio corpo” e “do mesmo olhar”, travessia para o encontro com o outro que “retorna e nos interroga”, “nos comove e nos denuda”, “nos deixa sem nome.” (p.67/68)
- Tem namorado ou marido? Às vezes, me perguntam.
- Atualmente, estou sozinha. Respondo
- Você tem que arrumar um namorado que enxergue. Tem muito rapaz bom por aí! É melhor um homem que enxergue para que ele cuide de você.
Eu, indignada:
- Mas... Não preciso de um cuidador. Tenho necessidades afetivas como qualquer ser humano.
As relações humanas entre uma pessoa vidente e uma pessoa cega, independentemente do sexo, são vistas por muitos, como um ato de caridade, o que caracteriza quem enxerga como “pessoa de bom coração e alma nobre”. Se estamos acompanhados por alguém enxergante, perguntam se somos irmãos ou se ele está nos acompanhando. Nunca questionam se somos amigos. Amizade entre uma pessoa cega e uma pessoa vidente, para muitos, é impossível! Se estão juntos, com certeza, a pessoa com visão está ajudando a sem visão, o que denota que nós, pessoas cegas, não temos nada a oferecer às pessoas videntes, além do trabalho que damos a elas.
Bengala???!!!
-Você não precisa disso. Te levamos de carro. Caso não possamos levá-la, te damos o dinheiro do táxi.
Os amigos cegos:
- Você vai aprender. Nós vamos te ensinar a usar a bengala.
- Viu a corrente de ar?
- Então, aqui, é a esquina.
Não adiantava. Não havia incentivo nem credibilidade em casa. Com intenção de me protegerem, estavam me impedindo de caminhar com as minhas próprias pernas e provar para todos, inclusive, pra mim, que eu era capaz, bastava acreditar e enfrentar o mundo. Puxa! Enfrentar o mundo! Faço isso até hoje, desde o momento em que saio de casa, acompanhada pela minha inseparável bengala.
Praça Saens Pena. Meio da tarde. Ruas lotadas. Verão. Caminho pela calçada, tentando me desviar dos carros estacionados, barracas de camelô, multidão apressada, canteiros e atenta à minha bengala, que corre o risco de ser pisoteada. Ufa!!! Paro em frente à faixa de segurança, aguardando o auxílio de alguém para atravessar a rua. Ouço: "-Ela é cega?" Apesar da pergunta não ter sido dirigida a mim, respondo com tom de bom humor: "- Não! Estou treinando para quando houver um apagão."
Olhares surpresos, de indignação, dúvida, medo. - Como sai na rua sozinha? Não se perde? "Deus te ajuda, né? “eles” dizem.
Eu, perplexa, falo: - Se Deus me ajuda, espero que Ele pare o ônibus para mim, pois está chovendo e vou ficar no ponto sozinha.
As pessoas procuram amenizar a cegueira, buscando explicações no inexplicável, lançando mão do transcendental.
Cegueira x beleza x sucesso.
- Nossa! Ela é tão bonita! Viu os olhos dela? São limpinhos e verdes! Veste-se tão bem! Ela é cega, mas é inteligente, sabe muito bem o que está falando... Para combinar, tinha que ser: cega, feia e incompetente.
- Por que você é assim?
- Assim como?  Pergunto.
- Assim! Com este problema! Boa oportunidade para alguns esclarecimentos:
- A cegueira não é um problema; faz parte de mim, é uma das minhas peculiaridades. E você pode dizer a palavra CEGA. Não há problema algum em ouvi-la. A pessoa insiste:
- Mas... Você nasceu assim?
 De nada adiantou o meu discurso. Então, desisto: - Não! Nasci bem pequenininha e, aos poucos, fui crescendo... Por que as pessoas são ASSIM?!
As relações de tempo e espaço no mundo contemporâneo provocam distanciamentos cada vez maiores, entre as pessoas. Não temos tempo de parar para prestar maior atenção ao outro. Nesse contexto a dicotomia entre videntes e não videntes fica cada vez mais clara. “Estamos todos sofrendo de uma espécie de cegueira social que nos afasta pelas nossas diferenças”, conforme nos aponta Novaes (2000):
É aqui, através do corpo e de todos os sentidos, que Bavcar nos ensina a ver. Ele nos mostra que não se vê com os olhos apenas. É a crítica mais radical que podemos ter da idéia primeira e imediata como verdade (NOVAES, 2000, p. 27)
A deficiência torna-se um problema, um peso, um fardo para alguns que a tem e para a maioria que não a tem, o que justifica evitarem o adjetivo CEGO. Algumas pessoas vão além deste motivo: é como se fosse proibido dizer CEGO; como se fosse um crime. Atitude que reflete o olhar do outro sobre a deficiência. Não há naturalidade no lidar com a pessoa cega, surgem tensões sobre como proceder; há incômodos; alguns te abordam, gritando, pois julgam que, além da cegueira, você tem uma perda auditiva; outros te pegam pelo braço e te arrastam como se fosse um carrinho de feira; sem, ao menos, perguntarem se deseja ajuda e para onde vai.
- Mas... Estou esperando um amigo. Não preciso de ajuda. E ainda saem se queixando de você:
- É cego e se acha! Não precisa de ajuda. Então, fica aí perdido!
Sempre estamos a mercê do outro, é o que muitos pensam. Já que não temos a visão, estamos sob o seu domínio, a sua custodia a sua responsabilidade.
- Atravessa ela para mim. Obrigada!
- Bota ela no ônibus pra mim, por favor!
Transferência de obrigação, o que me faz sentir um estorvo social.
Uma vez, uma senhora que insistia em chamar-me de CEGUINHA, ficou muito ressentida porque eu lhe disse, muito calmamente, que gostaria de ser chamada pelo meu nome. Defendeu-se ela: -- Te ajudo a atravessar a rua todos os dias e não é por mal que te chamo assim...
Uma aluna da universidade, sem mais nem menos, disse: - Professora, imagino que para você viver bem, tem que ter uma auto estima muito elevada! Fiquei espantada com esta fala. Ela conseguiu entender tudo, apenas a partir dos meus relatos. Não podemos ter medo de viver, medo do que está por vir, por ouvir nas ruas e locais que frequentamos. Temos que estar preparados para nos posicionar diante das situações, pois, só assim, nos faremos respeitados. Dói! Como dói! Mas não podemos nos entregar, nos deixar abalar por muito tempo. Isto só é nos permitido por instantes. Tem que passar como uma rajada de vento. Temos que buscar força não sei aonde e nos defendermos, mesmo que sejamos mal interpretados. - As pessoas não falam por mal! Eu só conheço o bem e o mal. Se não falam por mal, então... E, quem fala o que quer, ouve o que não quer. - Você é muito intolerante, incompreensiva! Mas, só eu é tenho que compreender os outros? Eles não têm que me compreender? Têm que se dar conta de que sou feita de carne e osso e que nas minhas veias corre sangue... Não sou um ser inabalável, intocável, imune a qualquer toxina. Sou humana. Apenas humana, para o bem ou para o mal.
Há a perda da habilidade de ser "pequeno", de perder-se na multidão, de não ser notado, de ser anônimo, de ser simplesmente mais um na rua. É, essencialmente, a perda da capacidade de ajustar-se entre os companheiros sem ser apontado como estranhamente diferente. Algumas deficiências não evidenciam os que as possuem, passam despercebidos numa multidão. Outras, como a cegueira, marcam quem a tem de tal maneira que ele é notado ao se locomover, ao entrar num ambiente. Um ser incompleto. Não tem a visão e não pode confiar nos outros sentidos. Não possui nenhum contato realmente seguro com a vida. Está sem o controle de si mesmo, da sua vida, sem as cores de cada estação do ano. Vive uma vida sem luz.
A concepção equivocada das pessoas que enxergam, acerca da natureza da cegueira, geralmente se expressa subjulgando a autonomia da pessoa cega.
Aquele que não pode ver está, na verdade, criando uma polifonia do olhar, está multiplicando as maneiras, as possibilidades de ver, substituindo, no caso e essencialmente, o olho pela mão (BRISSAC, 2000, p. 42)
Se saímos às ruas, se trabalhamos, se levamos uma vida que nos é possível, considerando a nossa limitação, somos super-heróis, mediante os olhares de uns e os coitadinhos, frente aos olhares de outros. Nunca somos apenas humanos. Superestimados ou subestimados?! Eis a questão.
 - Ela Prado?!
 - E ELA?
-Ela quer beber o quê?
- A compra dela vai ser paga com cartão ou dinheiro?
- Ela prefere que cor e qual o número do seu pé?
Dirijo-me, então, a quem está me acompanhando:
- Diga a ele que quero coca com limão e sem gelo, já que precisamos de intérprete!!! Ou...
- Eu fiz a compra, você está me vendo com a carteira na mão. Então, poderia dirigir-se a mim?
E, ainda...
Este "ela" sou eu? Porque se for, EU prefiro preto ou caramelo e calço 34.
- Afinal, sou Ana Prado ou Ela Prado? Se não me cuidar, entro em conflito de identidade.
É neste contexto social que sobrevive quem não tem a visão; dele, ela traz todas as atitudes e sentimentos de compaixão pré-adquiridos. É dentro desta sociedade que me movo. E, como se os outros problemas da cegueira não bastassem, não sou aceita por mim mesma.
Na comunidade, em geral, estamos marcados como pessoa cega. Os que nunca se aperceberam dela e não pensavam nela em termos de adjetivo, têm agora uma nova concepção a seu respeito; "a professora cega", a ênfase está na minha cegueira. Possivelmente, um estranho pode se dirigir a uma pessoa cega, na rua, para perguntar se cursou o Pedro II: - Sentei-me ao lado de um cego durante todo o curso e pensei que fosse você. Era um ótimo sujeito. Talvez, tivesse sido um ótimo sujeito, mas, aparentemente, a única característica importante nele, era a sua cegueira.
O cego está assinalado, está colocado numa categoria na qual se espera que ele se enquadre. Os que enxergam, temem a cegueira, e não podem enfrentar as emoções e sentimentos que ela faz nascer neles de uma maneira tal que os permita dar à pessoa cega seu lugar "pessoal" entre eles. Isto é: não podem até que estejam dispostos a se enfrentarem e aos seus sentimentos, e tratara pessoa cega como um ser humano, de acordo com seu valor individual, considerando a sua especificidade: a falta da visão. A perda da visão é uma faca de dois gumes. Não é só a atitude do outro, mas a atitude de quem ficou cego que importa. Se ele sentir que não se "adaptou" à cegueira, se ele guardou ressentimentos e concentra-se em sua dor, há razões suficientes para não conseguir sua adequação social.
Se no íntimo ele não estiver apto e pronto a assumir sua posição anterior, para viver, então, ele, com todas estas atitudes, aumentará a dificuldade e a importância desta perda. Qualquer que seja a causa, a perda da adequação social, a perda da aceitação pelos outros; a perda de sua singularidade será a mais severa, entre múltiplas deficiências.
A "coisa"...
Manhã de segunda-feira. Terminal de ônibus. Pessoas apressadas. Barulho ensurdecedor. Desci do ônibus, acompanhada por um rapaz que, gentilmente, ofereceu-se para acompanhar-me à plataforma, onde pegaria outro ônibus. Conversávamos, quando um grito que me fez tremer, nos interrompe de forma abrupta, invadindo todo o ambiente:
 - Me dá ela aqui que eu a boto no ônibus!
Eu, irritada, e o rapaz, sem entender nada, dirige-se à funcionária do local:
- Como assim, minha senhora?
- Sei que ônibus ela vai pegar. Deixa que eu boto ela.
 Eu me tornei uma "coisa"...
- Pega ela aí; me dá ela aqui; bota ela sentadinha aqui; vou te botar no ônibus... Deixei de ser humana e passei a assumir o papel de um ser inanimado.
Por que as pessoas têm a necessidade de colocar o outro, pessoa com deficiência, num patamar inferior ao seu? “Fazem sem querer?” “Não fazem por mal!” Esta é uma visão corriqueira. Natural para muitos, mas que me causa repulsa, deixando-me, às vezes, sem palavras; outras vezes, irritada, e quando reajo, provoco indignação.
Somos vistos como seres assexuados, insensíveis, inanimados. Será que pensam que, já que somos pessoas cegas, convivemos com esta limitação, tudo é suportável? Pensam que nada nos aflige nos incomoda, nos faz sofrer? Estas situações nos machucam, nos humilham, nos inferiorizam e, se reagimos, muitas vezes, recebemos um outro rótulo: o de "revoltado. “ -Coitado ele não se aceita!” Não temos o direito de colocarmos o nosso ponto de vista, direito garantido a todos! Como somos pessoas sem visão sensorial, temos que aceitar tudo, passivamente. Pensam que nada nos aflige, nos incomoda, nos faz sofrer?
Tenho um superpoder: o da invisibilidade. Diversas vezes, não notam a minha presença nos lugares e não falam comigo. Tenho que provocar uma situação impactante para que se aproximem.
Sala dos professores. Eu, professora como todos que a frequentam. Abro a porta, peço licença. O maior falatório. Quando entro, se calam por alguns segundos.
Penso que se olham, se acotovelam. Passado o susto, tudo volta ao normal. E eu?! Em pé, parada, aguardando que alguém se aproximasse para me conduzir a um assento. Então, começo a andar a deriva, trombo numa mesa de centro e algo cai no chão. Uma professora me diz:
- Aqui é a sala dos professores! Quer falar com alguém?
Olho para ela, indignada, já que atuo na instituição há quatro anos e estou usando o meu crachá, que me identifica como professora. Constrangida, falo:
- Sou professora. Se não fosse, não estaria aqui! Quero apenas me sentar, pois só dou aula às 20 h.
Sento-me e o tempo parece não passar. Ninguém se dirige a mim. Conversam entre si, riem, trocam informações e eu???!!!  Ali! Um estranho no ninho!
Dias depois, solicito uma reunião com a coordenadora do curso, no qual eu ministrava duas disciplinas. Eu a entrego um cartaz imenso, que pode ser visto e lido à distância: fundo branco, letras grandes e coloridas - "MANTER DISTÂNCIA DO ESTRANHO, VALORIZA A FANTASIA RUIM."
Ela, sem entender nada, questiona o porquê da frase e do meu pedido de fixá-lo na sala dos professores. Explico e ela me compreende, me apóia e se desculpa pelo ocorrido, sugerindo que outros cartazes como aquele fossem confeccionados e espalhados pela universidade.
Universidade pública. Evento: “Educação inclusiva em foco”. Mesa mediada por uma professora/doutora no assunto. Sou anunciada. É a minha vez de falar. Mas...
-Onde está o microfone?
Aguardo. E ela, em alto e bom som:
- Não vai pegar o microfone?
Penso alto...
- Se eu soubesse onde ele está! Não me disse. É necessário. Sou cega!"
A platéia ri e alguns me aplaudem, timidamente. No fim do evento, sou informada de que a professora, tão orgulhosa de ser uma das maiores referências no cenário nacional em educação inclusiva, havia ficado sem graça, chegando a se ruborizar. É de se admirar vindo de uma doutora em Educação Inclusiva! Teoria!!! Mera teoria!!! Deve ter se debruçado anos e anos sobre livros, artigos, mas... E a vivência? A convivência? O dia-a-dia? De que adianta a teoria se não a exercemos na vida? Se, na vida não assumimos posturas coerentes com nossos discursos, em algum determinado momento, nos trairmos e somos desmascarados.
Referências Bibliográficas:
BAVCAR, Evgen O contra-olhar. Texto para o projeto “A Expressão Fotográfica e Os Cegos”. Paris/Londrina: mimeo, correspondência pessoal à autora, 2003.
BRISSAC, Nelson. Fotografando contra o vento. In: Catálogo O Ponto Zero da Fotografia – Evgen Bavcar. Rio de Janeiro: Very Special Arts do Brasil, 2000.
EWALD, François. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Veja, 1993.
LEVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito. São Paulo. Edições 70, 1982.
MAGALHÃES, Fernanda. A Expressão Fotográfica e os Cegos. In: Caderno de Textos Educação, Arte, Inclusão, n. 2, p. 56-58, Edição Especial com os Anais do 1° Congresso Internacional Arte Sem Barreiras, Belo Horizonte: 2002/2003.
NOVAES, Adauto. Evgen Bavcar – não se vê com os olhos. In: O Ponto Zero da Fotografia – Evgen Bavcar. Rio de Janeiro: Very Special Arts do Brasil, 2000.
SARAMAGO, José. Folhas Políticas (1976-1998) Ano da Publicação Original: 1999 - Ano da Digitalização: 2005 - http://pt.scribd.com/doc/7037391/Jose-SARAMAGO-Folhas-Politicas
_______    O Ensaio sobre a Cegueira. Rio de Janeiro, Cia das Letras, 1995
SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro, Ed. DP&A, 2003.