Apresentação

Este blog é destinado a narrar experiências de pais, de familiares e de amigos de crianças e de jovens com trissomia e, também, dos próprios indivíduos com síndrome de Down. Se constitui também num espaço aberto para compartilhar experiências comuns e, com isso, aprender com as diferentes formas de experienciarmos as relações com esses indivíduos, deles verem o mundo e do modo como o habitam. Para isso, pressupomos que os participantes desse blog se disponham a uma amizade (Philia) que seja suficiente aberta para ver no modo de vida (philosophia) dos indivíduos com Down, uma certa sabedoria (sophia), que nos ajude a pensar o que somos nós na relação com esse outro tão familiar e, ao mesmo tempo, tão diferente do que somos. Acreditamos que essa filosofia Down seja possível, talvez porque a experiencie cotidianamente com a nossa filha Ana Sophia, que transformou efetivamente nossas vidas com sua presença e nos ensinou o quão precioso é conviver com a diferença. Entendemos, também, que além de um espaço de troca da experiência comum, esse blog pode ser um dos locais onde uma comunidade silenciada poderá falar (como já o vem fazendo em outros meios), vencendo a vergonha e o medo para se mostrar a uma comunidade que pouco a vê, salvo por questões de caridade, algumas vezes de direito, mas pouquíssimas vezes como tendo algo a dizer. Talvez, ainda que muito remotamente, este seja um meio de tentar sensibilizar essa comunidade a qual pertencemos, inclusive os profissionais que trabalham com esses indivíduos, para que os vejam de outro modo, com o efetivo valor e dignidade que merecem. Ao menos esta é a ambiciosa proposta de seus criadores: Pedro Angelo Pagni e Neuci Leme de Camargo. E também a nossa modesta herança cultural para Ana Sophia, a quem dedicamos este blog.

Philosophia Down

Esta sessão reúne reflexões e ensaios sobre  filosofias Down, entendido o primeiro termo em uma tradição bem específica da Filosofia, que a compreende como modo de vida ou como uma estilística da existências. Apresenta  descrições, narrativas ou testemunhos com aportes a questões e pontos de vistas filosóficos, artísticos ou científicos sobre a relação com os indivíduos com Síndrome de Down ou outra necessidade especial ou, ainda, diferenças étnicas-raciais, relacionadas ao gênero e a sexualidade, dentre outras.

Inaugura esta sessão um ensaio de um dos criadores deste blog, que será publicado no próximo número da revista colombiana Práxis y saberes: revista de investigaciones y Pedagogía (disponível em: http://virtual.uptc.edu.co/revistas/index.php/praxis_saber/issue/current).


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Aprendizados com a diferença em uma experiência da paternidade:
do testemunho ao cuidado
Pedro Angelo Pagni

Um dia deitei-me no divã e disse à terapeuta: “Sempre te disse que era uma pessoa afortunada, acho que as coisas começaram a mudar. Minha filha, por quem tanto esperei, nasceu com síndrome de Down.” Algum tempo depois, cerca de um ano, já voltava a me sentir alguém afortunado novamente, talvez, até mais do que antes. Afinal, dizia eu a mesma terapeuta: “Minha filha mudou minha vida, deu-me o que nunca tive – um pouco de humanidade, orgulho do que sou com todos meus defeitos e, principalmente, de ser pai dela, com tudo aquilo que possa ser de diferente”.
Desde que ela nasceu sinto-me em devir e com uma dívida semelhante à dívida para com a infância a qual se refere Lyotard (1997), porém, com uma infância particular a qual procuro saudar por meio de uma escrita e de um gênero de testemunho. Talvez, não saiba muito bem sua origem, tampouco entenda o porquê, mas sinto-me em dívida com o que aprendi com minha filha ao ponto de achar que essa experiência com ela deva ser narrada, pois, mais do que aprender somente com ela pude olhá-la de outro modo a partir das várias narrativas de experiências de pais de crianças e jovens com trissomia, destas mesmas crianças e jovens que ouvi em alguns documentários, todas elas, hoje noto, diferentes da que vivi e vivo.  Mas foi nesse contraste de narrativas que pude pensar e narrar a minha experiência de paternidade, na forma de um ensaio que mistura autobiografia e, como todas do gênero, ficção.
Este ensaio não procura, assim, elaborar o dolo da perda irreparável de uma filha real, como o faz Pierre Péju (2004), nem o luto de uma ideia de filha que se vai elaborando na medida em que se convive com ela, como expresso no início do documentário Do luto à luta de Evaldo Mocarzel, tampouco o processo de autoconhecimento que se vai estabelecendo com o pai na relação com o filho nascido com trissomia, como o romance de Cristovão Tezza (2008), e muito menos se refere ao processo de ver na relação de amizade com alguém tão diferente um encontro que faz com que um amigo se transforme, restabelecendo outros sentidos à sua vida, como estabelecidos no filme Huitième Jour de Jaco Van Dormael. Essas narrativas apreendem um pouco de tudo que narro aqui e de nada do que foi experienciado por este narrador, já que a minha experiência é singular, diferente das demais, se tocando em alguns pontos e se distanciando em muitos outros, mobilizando um pensar mais pelo que difere do que pelo que as identifica e se constituindo em uma narrativa do cuidado.
Essa talvez tenha sido a lógica que aprendi a cultivar na relação com minha filha, a lógica que aprendi com ela e que essas narrativas literárias, documentais ou fílmicas me auxiliaram a ver sentidos outros a essa minha experiência, assim como, imagino, parte daqueles que narram histórias desse tipo, quase autobiográficas, quase ficcionais, quase dramas, quase sem fim, acabam por ela perpassando, ao menos se tiverem alguma abertura e coragem para tal. Embora a coragem aqui seja uma palavra proibida porque é uma narrativa muito mais da insegurança, pensem apenas que aqui se expressa uma tentativa controlar um medo incontido por uma escrita ou por um ensaio similar a outras narrativas, pois, ninguém sabe quantas voltas precisei dar em torno de meu próprio eixo para estar aqui e agora lhes escrevendo, não sem algum receio, alguma vergonha de expor-me e, enfim, disso tudo que caracteriza uma narrativa em que se é testemunho, nos termos de Agamben (2005).

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Na gravidez de minha esposa, acompanhei todos os exames de perto. Estava sendo gestada em ideia e imaginação aquela que, depois que ficamos sabendo o gênero, seria a nossa filha. Muitas conversas ao pé-de-ouvido na barriga, enquanto mexia e remexia sem parar quando ouvia nossas vozes.  Mais do que uma filha gestada na barriga da mãe, depois fui entender, uma ideia de filha estava sendo gerada. Em tal gestação, como diz Peju (ano), eu era apenas o pai, aquele que circula em volta da mãe e do bebe, sem poder de senti-lo fisicamente, sentindo-se prescindível e, no máximo, capaz de sentir toda aquela movimentação numa barriga alheia. Por sua vez, a mãe que traz no ventre a criança, parece também gestá-la duplamente, formando também imagens com as quais, mais tarde, no nascimento, poderá comparar com o bebe real. Assim, minha esposa e eu, de modo distinto, imaginávamos uma feição, um rosto, muito, muito conhecido na ânsia de aguardar o nascimento e ver uma face e um corpo reais.
Talvez, a única coisa certa é que a amaríamos como fosse, como concretamente se apresentasse a nós: gravidez desejada, filha muito amada! Este foi um mantra recitado em minha cabeça, inúmeras vezes, como uma espécie de preparo desse tão aguardado nascimento. Finalmente, o nascimento veio. Um dia antes, quando fomos ao ginecologista, ele disse se queríamos que o parto fosse naquela noite ou no dia seguinte. Pegou-nos totalmente de surpresa. O parto foi no dia seguinte. Depois da notícia do nascimento esta era a segunda vez que sentia medo diante do parto que se aproximava. Achava estranho que, após a ausculta do coração da bebe (já chamada pelo nome), o médico tenha marcado tão rapidamente a cesariana, mas, enfim, estava lá, com máquina e tudo para filmar nascimento tão esperado e alguma consternação com o equipamento na sala de cirurgia.
Os médicos e enfermeira já habituados pouco se importavam. Uma rápida conversa com o médico enquanto vestíamos os aventais, na mesma sala, onde contou rapidamente sobre o tempo de profissão e o número de crianças que havia ajudado a trazer ao mundo, logo, estávamos todos lá prontos para mais uma chegada para a equipe e, especialmente, para um acontecimento em minha vida e na de minha esposa. Filmei tudo o que pude. Vi aquele nenê roxinho sair da barriga da mãe, sem muito choro, senti a emoção profunda de ver chegar ao mundo minha filha, embora um pouco atrapalhado com a câmera e com as lágrimas. Pude tocá-la, depois que tocou a mãe pela primeira vez e, logo, nos foi retirada. Toques inesquecíveis esses que são os primeiros e que ficam marcados em nossa memória. Estranhei tanto silêncio no nascimento, mais ainda certo olhar cauteloso dos médicos que a cercavam, especialmente, do pediatra que até hoje à acompanha. Só ouvi, enquanto filmava, que o cordão estava quase seco e o parto havia sido na hora certa: um dizendo para o outro, vamos encaminhar para exames o cordão. Mesmo assim, pensei comigo que bom...a pressa da consulta ao parto foi boa.
Enquanto minha esposa era levada para outra sala, me aproximei do pediatra e perguntei se estava tudo bem e, então, ele me chamou de lado, para perto de minha filha.  Disse-me mais ou menos o seguinte: “Ela nasceu bem fisicamente, com 59 cem, 2kg800, apgar 10/9 excelente, porém, há uma suspeita de que tenha nascido com Trissomia do 21 invertido.” A suspeita partia de alguns traços físicos como a forma dos dedos e dos olhos, a localização das orelhas, entre outras, e, o que viemos a saber mais tarde, um sopro cardíaco irregular.
Fiquei mudo, um buraco se abriu sob os meus pés e, pelo que me lembro, a única coisa que perguntei foi se correia risco de morte. A resposta foi a de que não e de que deveria esperar mais um dia para que minha esposa se recuperasse para que pudesse contar-lhe o que estava ocorrendo. Pensei comigo: como pode me dizer algo desse tipo, sem nos conhecer e sem saber que compartíamos tudo um com o outro. Dei alguns passos sem saber o que fazer, coberto de lágrimas e tendo que me conter aparentemente para que encontrasse a minha esposa, e não a preocupasse de imediato, ao menos até chegar ao quarto, quando lhe contaria. Entre o período em que ela aguardava para dar de mamar à nossa filha e o momento de ir para o quarto, fiquei desfilando meu sorriso amarelo e fazendo algo que nunca soube fazer bem: enganar. Antes de ir ao quarto, num dos momentos que pude me afastar, encontrei o obstetra que tentou me tranquilizar e na sua plácida humanidade contou algumas histórias, dizendo que isso ocorre em poucos casos que tiveram o acompanhamento que tivemos, como também poderia ser o contrário. Ouvi com atenção tudo aquilo e disse-lhe que não omitiria nada de minha esposa, no que concordou prontamente comigo.
Recentemente, em uma consulta, o mesmo obstetra revelou a sua admiração pelo modo como, desde o princípio, lidamos com a situação e como cuidamos de nossa filha, o que nos encheu de orgulho, porém, não era essa segurança, tampouco sentimento que tínhamos na ocasião. Aliás, os fantasmas que passaram pela minha cabeça na ocasião foram os mais assombrosos. Faltava familiaridade, distinta do que aquela que tinha com a ideia gestada de uma filha ideal, perfeita e, sobretudo, normal....palavra que ressoava na minha cabeça como a de alguém que precisava expiar uma culpa, ainda que não soubesse de quê.
Ainda na enfermaria próxima à sala de cirurgia, como minha filha não pegou imediatamente no peito, algo que demoraria mais algum tempo (duas ou três semanas), uma enfermeira recomendou que fôssemos levados ao quarto, onde receberíamos o auxílio de uma enfermeira para que minha esposa retirasse o leite para amamenta-la. Aguardei mais um pouco – quase uma eternidade de contenção e sofrimento –, enquanto a enfermeira ajudava a minha esposa com a ordenha, pedi-lhes para sair, dando uma desculpa qualquer.  
Chorei como uma criança na porta do hospital. Chegara a hora de enfrentar pela primeira vez os fantasmas. Indagava-me o que estava acontecendo e a pergunta que ecoava em minha cabeça era o porquê minha filha teria nascido com um “problema” (ainda não sabia que trissomia e síndrome de Down eram a mesma coisa, embora imaginasse vagamente, mas resistisse) e por que nós, minha esposa e eu, seríamos os escolhidos para enfrenta-lo. Quantas vezes, depois, nos meses que se seguiram, não fiz essa pergunta. Um pouco como algo que é uma característica pessoal, esse tom dramático de que os problemas são sempre maiores quando são meus, nossos talvez, mas, agora, pensava eu, tinha motivo para dramatizar. A culpa não foi expiada por ela, mas também deixou de existir muito rapidamente ... já não sentia culpa, somente medo do que teria que enfrentar pela frente. Mas medo de quê eu tinha, penso eu, hoje? Talvez, de ver se perder uma ideia de filha, diante de uma filha real, um luto que alguns pais vivem ao longo dos anos e outros, como eu, vivem em pouquíssimo tempo. Mas esse é um luto de todo pai e de toda mãe. Por que o meu deveria ser diferente? Porque minha ideia de filha que seria normal, perfeita e tudo aquilo que me faltava até então, morrera ali no nascimento de uma filha real, de carne e osso e cujas limitações já vinham com uma qualificação: “suspeita de trissomia do 21”. E, em torno dessa qualificação, se cria toda uma fantasmagoria, gerada pelas imagens e representações a respeito que podem ou não estar relacionadas às experiências provenientes de relações com crianças, jovens e adultos portadores da trissomia ou não, alimentadas pelo imaginário popular. Em meu caso, era uma mescla, já que havia trabalhado, em minha juventude, como professor de educação física de crianças e jovens com esse tipo de necessidade especial, ao mesmo tempo em que, como essa minha experiência estava afundada na memória e quase apagada, vinham os fantasmas de todo imaginário popular, até porque trabalhar como professor, não é o mesmo que ser pai...assim, meus pensamentos vagavam, deixando-me envolver com eles até o ponto de me paralisar em um momento em que tinha que tomar a palavra e partilhar a notícia com minha esposa. 
Não havia tempo para isso, mas se houvesse creio que todo meu pessimismo provinha de ter presenciado um nascimento que, diversamente do que asseverou Hannah Arendt (1993), muito provavelmente não traria nenhuma novidade ao mundo, embora sentisse o peso da responsabilidade sobre minha filha triplicar-se e que imaginasse que os cuidados com ela seriam maiores. Este era um de meus fantasmas: tinha que cuidar sem esperar nada dela, hoje percebo, já que imaginava, dentro do espírito popular mencionado, que minha filha, em razão de suas supostas limitações (e que nem sabia se eram reais), não traria ao mundo a novidade esperada em todo nascimento, sobretudo, daquele em que as crianças trazem ao mundo quando nele ingressam para mencionar uma expectativa de Hannah Arendt (1993).  
O telefone começa a tocar e, tendo que disfarçar, mudo a voz para dizer que está tudo bem aos familiares, algo que somente aos poucos fui dizendo a verdade....mas ainda confuso, queria mais informações sobre o “problema” de minha filha que a essa altura do nascimento já tinha se tornado um problema. Tentei encontrar coragem – logo eu que sempre me achei medroso – e, talvez, tenha-a encontrado naquilo que tinha de mais primitivo e profundo, que tinha construído a ferro e fogo ao longo da vida, sem saber muito bem como. De lá tirei as forças para caminhar em direção ao quarto, respirar, contar a minha esposa o que estava se passando desde o nascimento de nossa filha e me mostrar um pouco mais estruturado para que pudéssemos enfrentar, juntos, o que viesse pela frente.
Na verdade, queria enfrentar tudo sozinho e, talvez, poupá-la de algo que, por mais que quisesse e imaginasse uma saída mais heroica, não seria possível. Deparava-me com uma infantilidade que me imobilizava diante da fantasia de poder resolver tudo sozinho, estampada mais para esconder a profunda sensação de impotência e para amenizar o orgulho ferido em relação a minha eventual autossuficiência do que para enfrentar a situação de frente. Aprenderia, depois disso, a pedir ajuda a quem se dispusesse e, principalmente, a contar mais com a protagonista desse nascimento e desse acontecimento: minha filha.
A essa altura, minha esposa já suspeitava de algo, mas não imaginava o que poderia ser: chorou muito, enquanto acariciava a nossa filha ao seu lado. Olhava para ela e dizia: como? Tudo o que ela falava e que também sentia, procurava amenizar com argumentos. Ela dizia sentir culpa em razão de termos esperado muito tempo e estarmos com idade avançada, eu argumentava que poderíamos tê-la tido há vinte anos, quando éramos ainda jovens e inexperientes não tendo suporte para aguentar o que passávamos. Ela dizia outras coisas, tentando encontrar uma responsabilidade que não existia, eu argumentava, dizendo que havíamos sido sorteados. Lembrei-me das palavras do médico, regida por certa estatística: “No ano passado, foram seis crianças que recebi com trissomia, todas de mães entre 17 e 34 anos. E isso em uma cidade pequena”. Servia-me bem essa estatística, ao menos para tentar amenizar um sofrimento causado por uma culpa que, naquele momento, em nada ajudaria sentir.
Nem vou falar das culpas aos médicos, porque foram as que rapidamente superamos, ao ponto de continuarmos com os mesmos até hoje. Via, agora, na razão dos argumentos uma aliada para me manter em pé, para tentar de algum modo conter a angústia de minha esposa e, principalmente, para combater tudo que vinha (e como vêm coisas!) impedir o acolhimento da nossa tão esperada filha. Assim, deixamos que o amor falasse mais alto que tudo, sendo simplesmente pai e mãe de uma filha com um nome próprio – que depois, alguns médicos e enfermeiros esqueciam para chamar de “downzinha” e “cardiopatazinha”, dependendo da especialidade, numa clara falta de sensibilidade, que também encontraria em outras famílias de crianças e jovens com trissomia – e, com o apoio da família e dos amigos, enfrentando cada situação e comemorando cada pequena conquista. Contudo, se alguns médicos e enfermeiros têm essa insensibilidade, outros ainda procuram demonstrar a sua humanidade, apelando a motivos religiosos. Algumas enfermeiras disseram-nos, quando nos viram chorar ainda na maternidade: “crianças como essas só nascem para pais especiais como vocês, que se amam e que poderão lhes dar uma boa família”.
Entendia o gesto de solidariedade embutido em cada palavra, mas não nos sentíamos especiais dessa forma, ao contrário, e falamos isso para muita gente que veio nos consolar com essa frase, o que nos preocupava não era se seríamos ou não especiais, mas se estaríamos à altura de ter alguém como nossa filha. Isto, sim, era o que nos pegava e nos amedrontava. Algo que somente foi superado na convivência com ela e, gradativamente, fomos nos sentindo mais seguros como pais, obviamente, com todas incertezas que aturdem os espécimes desse gênero, em relação à educação, ao futuro...ah, o futuro!
Aos poucos, minha razão e o meu inconsciente tramaram-me peças incríveis, ajudando-me a perceber que tinha passado uma vida inteira me preparando para esse acontecimento que vivia nesse momento, por mais que não me sentisse preparado para tal. Vinham em minha memória as aulas de Educação Física que ministrava para classes especiais. Os nomes das crianças com quem trabalhei brotavam em minha cabeça, juntamente com seus rostos e com a pergunta: onde estão Janaína, Rodrigo, José Fernandes, Manoel, dentre tantos outros, cujos traços fisionômicos e gestualidade, se mostravam na feição de minha filha ou, melhor, em uma imagem do que ela seria no futuro.
Algo parecido se passava com a minha esposa. Há pouco tempo havia orientado um grupo de pais de crianças altistas, com trissomia e outras síndromes no Centro de Estudos em Educação e Saúde da UNESP, onde atuava como voluntária. Tinha certa experiência com esse trabalho de orientação psicológica desde 1997. Coincidentemente, os discursos que ouvia aos poucos ressoavam, até porque uma das funcionárias do hospital que servia o quarto em que estávamos instalados fazia parte desse grupo e, quando se aproximava, sem que o soubesse ativava essa poderosa memória inconsciente.
Suspeitava que minha aproximação da filosofia da diferença e temas correlatos não teria sido por acaso, assim como a convivência com meu supervisor de pós-doutorado que virou um grande amigo, daqueles que escolhemos como irmão, que tem um filho com necessidades especial, com o qual convivi por algum tempo. Nesses momentos acreditamos em tudo que queremos e que convém, podem dizer alguns, mas também em tudo que faz algum sentido e que nos faz sentir mais fortes, potentes e, quem sabe, a altura do que nos passa, por mais difícil que isso seja. E, posso dizer, buscava um sentido para o que se passava, tentando tornar útil tudo aquilo que lera, vira e experimentara. Dava-me conta em relação ao que tentei compreender, sem muito êxito, em Deleuze (2000) e que agora encontrava diante de mim, com um nascimento, o de minha filha: um acontecimento. Por sua vez, essa noção me remetia à conferência proferida por um grande amigo (o mesmo que foi meu supervisor de pós-doutorado) em um dos eventos que organizei e que minha esposa – com mais ou menos seis meses de gravidez – e eu ouvimos com muito encantamento como uma celebração da vida, mesmo no momento em que tanto falava da morte (BÁRCENA, 2010).
Enquanto elaborava o luto de uma ideia de filha convivendo com uma criança real e percebendo que esta dependia de cuidados especiais, começava a sentir essa celebração da vida com muito mais vigor do que qualquer representação ou norma, porque proveniente de um encontro e, principalmente, de uma experiência com alguém que me surpreendia e, na relação desarmada com ela, fazia me ver o quanto podia esperar dela, de seu nascimento. Percebia, assim, o quanto me equivocara em relação ao nascimento de minha filha, pois, a promessa de novidade que agora via era mais alvissareira do que a de qualquer outra, implicava numa mudança efetiva se não do mundo, ao menos minha.

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Quando li O filho eterno de Cristovão Tezza (2008), minha filha tinha acabado de nascer e estávamos ainda averiguando com os cardiologistas se teria ou não que se submeter a uma cirurgia para a correção de um defeito cardíaco congênito nas valvas e, segundo dizem os médicos, comum em parte das crianças que nascem com Síndrome de Down.
Não sei se essas foram imagens que me confortaram diante de um espírito tão pouco afeito à religiosidade ou se existe uma racionalidade outra, como depois li nas obras de Foucault (2004) sobre os estoicos. O que sei é que tudo aquilo que estava incorporado a minha experiência me ajudaram a enfrentar essa situação e assumir minha filha não mais como uma ideia, mas uma criança real, que se apresentava diante de mim e, como todas as outras, diferente. Em um único gesto, o do nascimento, minha filha me ensinou o que há uma década vinha tentando aprender com a diferença, tarefa que desde então me dedico todo dia, no exercício da paternidade, surpreendendo e, principalmente, sendo surpreendido por ela.
Esse meu aprendizado se deve também à minha esposa que, diferentemente de mim, com sua percepção aguda descobriu que é melhor deixar que nossa filha mostre-nos as suas potencialidades, até onde pode chegar, do que acreditar na norma instituída e nas teorias de desenvolvimento infantil, que a concebe de modo indiferente. Diferentemente do que narrado em O Filho Eterno de Cistovão Tezza (2008), optamos por não entrar na corrida pela normalidade, como um déficit a ser superado em cada atividade e, enfim, chegar a ser “normal”, talvez, neste caso e em muitos outros, podemos dizer que não é o que queremos para ela e teremos que lutar contra aqueles que querem julgá-la dessa forma.
Resolvemos, sob este aspecto, inverter um pouco as regras desse jogo e olhar mais para ela do que o que se espera para uma criança como ela ou na faixa de desenvolvimento dela, reconhecendo aí uma potencialidade que nos indicará como e o que fazer. E, desde então, temos visto como tem potencialidade – para usar uma expressão que alguns amigos que trabalham com Educação Especial utilizaram na primeira vez que a viram. Isso porque percebemos que, embora desde os dois meses de vida faça estimulação precoce, há uma coisa que é da própria Ana Sophia: um brilho nos olhos que se percebe pulsar a vida e uma força que se vê em cada gesto.
Se isso foi perceptível logo nos primeiros meses, teríamos ainda muito que descobrir e o que enfrentar com ela. Às vezes, ouvindo absurdos de pais de crianças com alguma necessidade especial que, constantemente, nos interpelavam para dizer que tinham “uma criança igual a essa em casa”, até que aprendemos a responder que “não, não, igual a ela não existia, muito menos estava em casa alheia”. Outras vezes perguntavam se não teríamos mais filhos, dizendo de sua própria experiência que só se tranquilizaram depois que o filho ou a filha seguinte nasceu normal, sem se importar se o assunto da normalidade nos incomodava ou não. Isso nos afastou um pouco de reuniões de pais, pois, a conversa que se vê circular em geral nesses ambientes é acerca da normalidade – chamam médicos e especialistas para proferirem palestras acerca de um saber que poderá fazer com que nossos filhos cheguem o mais próximo possível de uma linha chamada normal.
O que sentia e sinto falta é de ouvir como foram pais e mães de crianças e jovens com necessidades especiais, a narrativa de experiências de maternidade e paternidade reais, assim como ouvir essas mesmas crianças e jovens, quem sabe, para conhecer melhor o mundo que vivem e a vida que levam, como mostra brilhantemente o documentário de Evaldo Mocarzel Do luto à luta. Diferentemente de ter buscado esse documentário como fiz com o livro de Tezza (2008), demorei muito para assisti-lo. Fui a um congresso em que esse documentário estava sendo apresentado em seu circuito cinematográfico e arrumei uma série de subterfúgios para não vê-lo. Depois, criei coragem e o comprei. Ficou muito tempo guardado, até que um dia, após ter assistido uma parte do documentário na TV, sem saber o que era, fui assisti-lo.
O reencontro da coragem para assistir o filme ocorreu após um momento que havia tentado mobilizar bastante essa virtude para enfrentar um problema bem mais delicado do que os meus medos e uma situação que colocava em risco a vida de minha filha. Ana Sophia tinha nascido com um problema cardíaco congênito, um sopro ou, na linguagem médica, um defeito nas valvas. Minha esposa e eu andamos de médico em médico em busca de uma resposta que indicasse a desnecessidade de correção cirúrgica. Contudo, todos davam a resposta era quase a mesma, a cirurgia era necessária e deveria ocorrer no quinto mês de vida de nossa filha. Em cada vez, foi como se fosse a primeira, aquelas palavras  chegavam aos meus ouvidos em um tom ensurdecedor, que me levavam ao desespero, e para fugir disso, punha minha imaginação para funcionar, como faz toda criança que, ao se proteger do mundo, cria o seu em que coisas impossíveis podem acontecer.
Gostaria de trocar de lugar com ela, mas não era possível: a síndrome ficou uma coisa muito pequena diante da cirurgia que iria enfrentar. Isso ocorreu no mesmo período em que recebi uma notícia profissional das mais gratificantes: tinha conseguido uma bolsa em reconhecimento pelo meu trabalho. Depois de muitos anos de solicitação, recebi essa notícia no momento menos esperado e, poderia dizer com tranquilidade, prescindível. Pensava com a indignação de sempre, sinto orgulho de ter alcançado esse mérito, mas, se fosse possível, trocaria essa conquista profissional, que tanto busquei, por qualquer coisa que amenizasse o sofrimento de minha filha. Contudo, nada disso era possível, só me deu a dimensão de minha impotência sobre o arranjo dessas coisas e que uma coisa nada tinha a ver com outra, salvo pelo fato de perceber que o que dava valor atualmente não era mais o mesmo nem se restringia ao reconhecimento pelo meu mérito profissional. Agora, o que estava em risco era a vida de minha filha.
O temor em perdê-la foi algo que me acompanhou nesse período, devo assumir, ao ponto de resistir a tudo que me afastasse muito de minha filha, ao mesmo tempo em que as imagens que habitavam minha cabeça e tentavam reverter o estado de impotência sentida ocupavam meus pensamentos: os problemas profissionais ficaram pequenos. Dos problemas aos compromissos já assumidos, o que me importava era ver minha filha bem, levando uma vida sem limitações e livre do risco de morte, algo que fez com que redimensionasse minha vida e as pretensões na carreira a qual havia escolhido.
Foi no vínculo que estabeleci com ela, o da paternidade mesma, construído no dia-a-dia, que me senti mais apto para enfrentar a situação e para confiar profundamente nela, na vontade de vida que lhe saltava os olhos. Em contrapartida, encontrei no gesto de muitas pessoas da família, de amigos e de colegas de trabalho de vários lugares, estados e países uma solidariedade tamanha e sincera, que me fez voltar acreditar que, se a vida intelectual não era mais a mesma, ainda havia nela pessoas que a habitavam. Via se processar uma esperança na universidade e na política acadêmica, ao mesmo tempo em que me sentida pessoalmente arrasado, limitado, mobilizando quase todas minhas forças para estar ao lado de minha esposa e acompanhar a minha filha.
A aflição de minha esposa e a minha eram tanta que, na antessala de cirurgia, momentos antes de entrega-la a uma competente equipe de cirurgiões, em São Paulo, Ana Sophia nos olhou com tanta tranquilidade, enquanto nos debulhávamos em lágrimas, que nos trouxe uma profunda esperança na sua recuperação. Agiu como se tudo passaria bem e a pulsão de vida que brotava em seu olhar nos inspirou a coragem exigida para que enfrentássemos a situação. No período em que esteve internada no Centro de Terapia Intensiva, ouvimos outras histórias, algumas mais complicadas do que a de nossa filha, outras sem diagnóstico, que nos fizeram olhar um pouco mais a nossa volta. Sentíamos certo alívio por ela ter uma síndrome tão estudada e conhecida, que poderia de agora em diante ter os mesmos problemas de todos os pais, se tudo corresse bem na cirurgia. Efetivamente, tudo correu bem. Em poucos dias ela saiu do CTI, em seguida ficou mais um dia no quarto e, por fim, voltou para a casa, sendo que hoje está totalmente liberada para fazer o que toda criança faz, correr, brincar, nadar, e como gosta de nadar.
Dessa experiência ficaram algumas marcas físicas nela: certa resistência a hospitais e pessoas de branco. Em nós, imagens de alguém tão pequena tendo que passar pelo que passou, as noites em claro no CTI, as crises de abstinência de remédios e a agitação constante das noites. Desde então os problemas passaram a ter dimensão que possuem, ao menos assim os julgo, dando-lhes o tamanho que têm. Passei também a desempenhar várias tarefas profissionais ao mesmo tempo e fazer as coisas com um pouco mais de presteza, para que pudesse dedicar maior tempo a minha filha. Não que hoje ela precise desse tempo, mas eu quero dispor-me dele para que possa acompanhar cada passo, ver cada conquista e estar presente em sua vida, ao mesmo tempo em que concentro minhas energias em atividades que diga respeito à experiência, à escrita e à docência que permitam um maior engajamento ético e político.
Em relação à família, os primeiros a chegarem ao hospital, inclusive, para ajudar nas duas primeiras semanas foram minha cunhada e meu concunhado. Era perceptível a tensão no ar e, ao mesmo tempo, certa alegria não desfechada. Foi minha cunhada e, depois, minha mãe que acompanharam, depois, a saga para fazer ela mamar no peito. Quando conseguiu mamar no peito, comemoramos como uma grande vitória, e assim para cada coisa desde então. O primeiro passo, a primeira palavra, o primeiro dia na escola, etc. Desde então, aprendo nessa relação com minha filha a viver a cada dia, comemorando cada conquista e trabalhando para obtê-la, mas, principalmente, aprendo com um tempo diverso, diferente do meu – metido em tantos afazeres e em uma lógica produtivista da universidade – o caro valor da pausa e do ralento, numa melodia que soa bem na medida em que se vê respeitado um ritmo.
Lembro-me quando, após alguns dias na escola, ela aprendeu a diferença entre o rápido e o lento. Começou a cantar uma música lentamente e, de repente, começou gritar e, depois, a cantar mais rápido, mais rápido, numa velocidade extrema que eu mesmo desconhecia. Isso fez com que pensasse: “minha filha estava sendo apresentada ao mundo e, sobretudo, ao tempo que o rege – o da velocidade, e não tinha encontrado qualquer problema nisso, seu ritmo já se misturava com o do mundo, só não sabia julgar se feliz ou infelizmente”. De qualquer forma, essas eram as imagens de alguém que sentia vertigem da velocidade do mundo e via que esta não poderia ser refreada por mim, nem pelas novas gerações que lhe faziam coro e tampouco por minha filha que já começava a adentrar a esse ritmo frenético, distorcendo a sua melodia original.  Será que era mesmo original ou mais um pressentimento que caia por terra? Não sei qual a resposta a essa pergunta, o que sei é que minha filha cujo diagnóstico dos especialistas supunham uma menina mais lenta, agora, estava cantando na velocidade do mundo. Comecei a ver a captura de um tempo pelo de um mundo absolutamente adulto e massificado, para meu desalento, porém, ainda vejo em bons e longos momentos uma temporalidade que lhe resiste, que caracteriza a infância e que ainda não sei quanto durará.
Enquanto isso, tento dar voz a essa minha experiência da paternidade e da relação com a diferença. Se, em outra ocasião recorri aos documentários de Evaldo Mocarzel e ao livro de Cristovão Tezza (2008) para tentar auxiliar a compor meu silêncio e testemunhar minha posição em relação ao assunto (PAGNI, 2010), agora, com esse escrito vejo se abrir outra possibilidade: a de narrar minha própria experiência, testemunhando cada pequeno acontecimento que se passa nessa relação com minha filha e, ao mesmo tempo, engajando-me para lhe auxiliar a ter um lugar no mundo. Mas esse lugar ela terá que conquistar, seguramente, com meu apoio e, muito provavelmente, com meu cuidado, já que essa é minha dívida e, hoje, meu desejo de aprender com a diferença.

Referências
AGAMBEN, G. Homo sacer III: lo que queda de Auschwitz. 2.ed. Valencia: Pre-textos, 2005, V. III.


BÁRCENA, F.  A dignidade de um acontecimento. Sobre a pedagogia da despedida. In: PAGNI, P. A.; GELAMO, R.P. Experiência, Educação e Contemporaneidade. São Paulo/Marília: Cultura Acadêmica/Poïesis, 2010.
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FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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PÉJU, P. Nacimientos. Salamanca: Ediciones Tempora, 2004.

TEZZA, C. O filho eterno. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
 

3 comentários:

  1. Pedro, que texto lindo! Lindo porque profundo, profundo porque simples! simples porque simplesmente narra a experiência estonteante de nos tornarmos responsáveis por alguém que não nós mesmos: nos tornamos pais e mães e ai, meu amigo, nos transformamos, totalmente! Creio que foi ao me tornar mãe que pude entender o verdadeiro sentido da dialética! deixar de ser para ser...
    VC narra a experiência e o medo de se tornar pai, não de uma criança com Síndrome de Down, mas de uma criança, no caso Ana Sophia, que, como vc mesmo diz, é única e sempre será!!! É assim que acontece, vamos aprendendo com eles mesmos o exercício da maternidade e paternidade e do AMOR! incondicional!
    Que bom vc ter escrito o texto! A emoção tomou conta de mim várias vezes, porque revisitava a história de outros pais, no amor que via neles e no cuidado com seus filhos...
    Vou usar muito seu texto, aqueles que se tornarão educadores precisam dele, da sensibilidade que emana dele.
    obrigada, amigo!
    Anna Augusta

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  2. Muito obrigado pelas palavras e pela mensagem, Anna Augusta! Como especialista que é e como sensível às questões que tratamos, sinta-se a vontade para participar, escrever e colaborar.
    Abraços nossos

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  3. Professor Pedro... Que belo texto, excelente sensibilidade..tantos medos e receios que passamos no momento que nos tornamos pais.... lembrei-me de um texto lido ainda na faculdade..Bem vindo a Holanda...
    Grande abraço..
    Paula

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