Esta sessão reúne reflexões e ensaios sobre filosofias Down, entendido o primeiro termo em uma tradição bem específica da Filosofia, que a compreende como modo de vida ou como uma estilística da existências. Apresenta descrições, narrativas ou testemunhos com aportes a questões e pontos de vistas filosóficos, artísticos ou científicos sobre a relação com os indivíduos com Síndrome de Down ou outra necessidade especial ou, ainda, diferenças étnicas-raciais, relacionadas ao gênero e a sexualidade, dentre outras.
Inaugura esta sessão um ensaio de um dos criadores deste blog, que será publicado no próximo número da revista colombiana Práxis y saberes: revista de investigaciones y Pedagogía (disponível em: http://virtual.uptc.edu.co/revistas/index.php/praxis_saber/issue/current).
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Aprendizados com a
diferença em uma experiência da paternidade:
do testemunho ao cuidado
Pedro Angelo Pagni
Um dia deitei-me no divã e disse à terapeuta: “Sempre te disse que
era uma pessoa afortunada, acho que as coisas começaram a mudar. Minha filha,
por quem tanto esperei, nasceu com síndrome de Down.” Algum tempo depois, cerca
de um ano, já voltava a me sentir alguém afortunado novamente, talvez, até mais
do que antes. Afinal, dizia eu a mesma terapeuta: “Minha filha mudou minha
vida, deu-me o que nunca tive – um pouco de humanidade, orgulho do que sou com
todos meus defeitos e, principalmente, de ser pai dela, com tudo aquilo que
possa ser de diferente”.
Desde que ela nasceu sinto-me em devir e com uma dívida
semelhante à dívida para com a infância a qual se refere Lyotard (1997), porém,
com uma infância particular a qual procuro saudar por meio de uma escrita e de
um gênero de testemunho. Talvez, não saiba muito bem sua origem, tampouco
entenda o porquê, mas sinto-me em dívida com o que aprendi com minha filha ao
ponto de achar que essa experiência com ela deva ser narrada, pois, mais do que
aprender somente com ela pude olhá-la de outro modo a partir das várias
narrativas de experiências de pais de crianças e jovens com trissomia, destas
mesmas crianças e jovens que ouvi em alguns documentários, todas elas, hoje
noto, diferentes da que vivi e vivo. Mas
foi nesse contraste de narrativas que pude pensar e narrar a minha experiência
de paternidade, na forma de um ensaio que mistura autobiografia e, como todas
do gênero, ficção.
Este ensaio não procura, assim, elaborar o dolo da perda
irreparável de uma filha real, como o faz Pierre Péju (2004), nem o luto de uma
ideia de filha que se vai elaborando na medida em que se convive com ela, como
expresso no início do documentário Do
luto à luta de Evaldo Mocarzel, tampouco o processo de autoconhecimento que
se vai estabelecendo com o pai na relação com o filho nascido com trissomia,
como o romance de Cristovão Tezza (2008), e muito menos se refere ao processo
de ver na relação de amizade com alguém tão diferente um encontro que faz com
que um amigo se transforme, restabelecendo outros sentidos à sua vida, como
estabelecidos no filme Huitième Jour de
Jaco Van Dormael. Essas narrativas apreendem um pouco de tudo que narro aqui e
de nada do que foi experienciado por este narrador, já que a minha experiência
é singular, diferente das demais, se tocando em alguns pontos e se distanciando
em muitos outros, mobilizando um pensar mais pelo que difere do que pelo que as
identifica e se constituindo em uma narrativa do cuidado.
Essa talvez tenha sido a lógica que aprendi a cultivar
na relação com minha filha, a lógica que aprendi com ela e que essas narrativas
literárias, documentais ou fílmicas me auxiliaram a ver sentidos outros a essa
minha experiência, assim como, imagino, parte daqueles que narram histórias
desse tipo, quase autobiográficas, quase ficcionais, quase dramas, quase sem
fim, acabam por ela perpassando, ao menos se tiverem alguma abertura e coragem
para tal. Embora a coragem aqui seja uma palavra proibida porque é uma
narrativa muito mais da insegurança, pensem apenas que aqui se expressa uma
tentativa controlar um medo incontido por uma escrita ou por um ensaio similar
a outras narrativas, pois, ninguém sabe quantas voltas precisei dar em torno de
meu próprio eixo para estar aqui e agora lhes escrevendo, não sem algum receio,
alguma vergonha de expor-me e, enfim, disso tudo que caracteriza uma narrativa
em que se é testemunho, nos termos de Agamben (2005).
***
Na gravidez de minha esposa, acompanhei todos os exames
de perto. Estava sendo gestada em ideia e imaginação aquela que, depois que
ficamos sabendo o gênero, seria a nossa filha. Muitas conversas ao pé-de-ouvido
na barriga, enquanto mexia e remexia sem parar quando ouvia nossas vozes. Mais do que uma filha gestada na barriga da
mãe, depois fui entender, uma ideia de filha estava sendo gerada. Em tal
gestação, como diz Peju (ano), eu era apenas o pai, aquele que circula em volta
da mãe e do bebe, sem poder de senti-lo fisicamente, sentindo-se prescindível
e, no máximo, capaz de sentir toda aquela movimentação numa barriga alheia. Por
sua vez, a mãe que traz no ventre a criança, parece também gestá-la duplamente,
formando também imagens com as quais, mais tarde, no nascimento, poderá
comparar com o bebe real. Assim, minha esposa e eu, de modo distinto, imaginávamos
uma feição, um rosto, muito, muito conhecido na ânsia de aguardar o nascimento
e ver uma face e um corpo reais.
Talvez, a única coisa certa é que a amaríamos como
fosse, como concretamente se apresentasse a nós: gravidez desejada, filha muito
amada! Este foi um mantra recitado em minha cabeça, inúmeras vezes, como uma
espécie de preparo desse tão aguardado nascimento. Finalmente, o nascimento
veio. Um dia antes, quando fomos ao ginecologista, ele disse se queríamos que o
parto fosse naquela noite ou no dia seguinte. Pegou-nos totalmente de surpresa.
O parto foi no dia seguinte. Depois da notícia do nascimento esta era a segunda
vez que sentia medo diante do parto que se aproximava. Achava estranho que,
após a ausculta do coração da bebe (já chamada pelo nome), o médico tenha
marcado tão rapidamente a cesariana, mas, enfim, estava lá, com máquina e tudo
para filmar nascimento tão esperado e alguma consternação com o equipamento na
sala de cirurgia.
Os médicos e enfermeira já habituados pouco se
importavam. Uma rápida conversa com o médico enquanto vestíamos os aventais, na
mesma sala, onde contou rapidamente sobre o tempo de profissão e o número de
crianças que havia ajudado a trazer ao mundo, logo, estávamos todos lá prontos
para mais uma chegada para a equipe e, especialmente, para um acontecimento em
minha vida e na de minha esposa. Filmei tudo o que pude. Vi aquele nenê roxinho
sair da barriga da mãe, sem muito choro, senti a emoção profunda de ver chegar
ao mundo minha filha, embora um pouco atrapalhado com a câmera e com as
lágrimas. Pude tocá-la, depois que tocou a mãe pela primeira vez e, logo, nos
foi retirada. Toques inesquecíveis esses que são os primeiros e que ficam
marcados em nossa memória. Estranhei tanto silêncio no nascimento, mais ainda
certo olhar cauteloso dos médicos que a cercavam, especialmente, do pediatra que
até hoje à acompanha. Só ouvi, enquanto filmava, que o cordão estava quase seco
e o parto havia sido na hora certa: um dizendo para o outro, vamos encaminhar
para exames o cordão. Mesmo assim, pensei comigo que bom...a pressa da consulta
ao parto foi boa.
Enquanto minha esposa era levada para outra sala, me
aproximei do pediatra e perguntei se estava tudo bem e, então, ele me chamou de
lado, para perto de minha filha.
Disse-me mais ou menos o seguinte: “Ela nasceu bem fisicamente, com 59
cem, 2kg800, apgar 10/9 excelente, porém, há uma suspeita de que tenha nascido
com Trissomia do 21 invertido.” A suspeita partia de alguns traços físicos como
a forma dos dedos e dos olhos, a localização das orelhas, entre outras, e, o
que viemos a saber mais tarde, um sopro cardíaco irregular.
Fiquei mudo, um buraco se abriu sob os meus pés e, pelo
que me lembro, a única coisa que perguntei foi se correia risco de morte. A
resposta foi a de que não e de que deveria esperar mais um dia para que minha
esposa se recuperasse para que pudesse contar-lhe o que estava ocorrendo.
Pensei comigo: como pode me dizer algo desse tipo, sem nos conhecer e sem saber
que compartíamos tudo um com o outro. Dei alguns passos sem saber o que fazer,
coberto de lágrimas e tendo que me conter aparentemente para que encontrasse a minha
esposa, e não a preocupasse de imediato, ao menos até chegar ao quarto, quando
lhe contaria. Entre o período em que ela aguardava para dar de mamar à nossa
filha e o momento de ir para o quarto, fiquei desfilando meu sorriso amarelo e
fazendo algo que nunca soube fazer bem: enganar. Antes de ir ao quarto, num dos
momentos que pude me afastar, encontrei o obstetra que tentou me tranquilizar e
na sua plácida humanidade contou algumas histórias, dizendo que isso ocorre em
poucos casos que tiveram o acompanhamento que tivemos, como também poderia ser
o contrário. Ouvi com atenção tudo aquilo e disse-lhe que não omitiria nada de
minha esposa, no que concordou prontamente comigo.
Recentemente, em uma consulta, o mesmo obstetra revelou
a sua admiração pelo modo como, desde o princípio, lidamos com a situação e
como cuidamos de nossa filha, o que nos encheu de orgulho, porém, não era essa
segurança, tampouco sentimento que tínhamos na ocasião. Aliás, os fantasmas que
passaram pela minha cabeça na ocasião foram os mais assombrosos. Faltava
familiaridade, distinta do que aquela que tinha com a ideia gestada de uma
filha ideal, perfeita e, sobretudo, normal....palavra que ressoava na minha
cabeça como a de alguém que precisava expiar uma culpa, ainda que não soubesse
de quê.
Ainda na enfermaria próxima à sala de cirurgia, como minha
filha não pegou imediatamente no peito, algo que demoraria mais algum tempo
(duas ou três semanas), uma enfermeira recomendou que fôssemos levados ao
quarto, onde receberíamos o auxílio de uma enfermeira para que minha esposa retirasse
o leite para amamenta-la. Aguardei mais um pouco – quase uma eternidade de
contenção e sofrimento –, enquanto a enfermeira ajudava a minha esposa com a
ordenha, pedi-lhes para sair, dando uma desculpa qualquer.
Chorei como uma criança na porta do hospital. Chegara a
hora de enfrentar pela primeira vez os fantasmas. Indagava-me o que estava
acontecendo e a pergunta que ecoava em minha cabeça era o porquê minha filha teria
nascido com um “problema” (ainda não sabia que trissomia e síndrome de Down
eram a mesma coisa, embora imaginasse vagamente, mas resistisse) e por que nós,
minha esposa e eu, seríamos os escolhidos para enfrenta-lo. Quantas vezes,
depois, nos meses que se seguiram, não fiz essa pergunta. Um pouco como algo
que é uma característica pessoal, esse tom dramático de que os problemas são
sempre maiores quando são meus, nossos talvez, mas, agora, pensava eu, tinha
motivo para dramatizar. A culpa não foi expiada por ela, mas também deixou de
existir muito rapidamente ... já não sentia culpa, somente medo do que teria
que enfrentar pela frente. Mas medo de quê eu tinha, penso eu, hoje? Talvez, de
ver se perder uma ideia de filha, diante de uma filha real, um luto que alguns
pais vivem ao longo dos anos e outros, como eu, vivem em pouquíssimo tempo. Mas
esse é um luto de todo pai e de toda mãe. Por que o meu deveria ser diferente?
Porque minha ideia de filha que seria normal, perfeita e tudo aquilo que me
faltava até então, morrera ali no nascimento de uma filha real, de carne e osso
e cujas limitações já vinham com uma qualificação: “suspeita de trissomia do
21”. E, em torno dessa qualificação, se cria toda uma fantasmagoria, gerada
pelas imagens e representações a respeito que podem ou não estar relacionadas
às experiências provenientes de relações com crianças, jovens e adultos
portadores da trissomia ou não, alimentadas pelo imaginário popular. Em meu
caso, era uma mescla, já que havia trabalhado, em minha juventude, como
professor de educação física de crianças e jovens com esse tipo de necessidade
especial, ao mesmo tempo em que, como essa minha experiência estava afundada na
memória e quase apagada, vinham os fantasmas de todo imaginário popular, até
porque trabalhar como professor, não é o mesmo que ser pai...assim, meus
pensamentos vagavam, deixando-me envolver com eles até o ponto de me paralisar
em um momento em que tinha que tomar a palavra e partilhar a notícia com minha
esposa.
Não havia tempo para isso, mas se houvesse creio que
todo meu pessimismo provinha de ter presenciado um nascimento que, diversamente
do que asseverou Hannah Arendt (1993), muito provavelmente não traria nenhuma
novidade ao mundo, embora sentisse o peso da responsabilidade sobre minha filha
triplicar-se e que imaginasse que os cuidados com ela seriam maiores. Este era
um de meus fantasmas: tinha que cuidar sem esperar nada dela, hoje percebo, já
que imaginava, dentro do espírito popular mencionado, que minha filha, em razão
de suas supostas limitações (e que nem sabia se eram reais), não traria ao
mundo a novidade esperada em todo nascimento, sobretudo, daquele em que as
crianças trazem ao mundo quando nele ingressam para mencionar uma expectativa
de Hannah Arendt (1993).
O telefone começa a tocar e, tendo que disfarçar, mudo a
voz para dizer que está tudo bem aos familiares, algo que somente aos poucos
fui dizendo a verdade....mas ainda confuso, queria mais informações sobre o
“problema” de minha filha que a essa altura do nascimento já tinha se tornado
um problema. Tentei encontrar coragem – logo eu que sempre me achei medroso –
e, talvez, tenha-a encontrado naquilo que tinha de mais primitivo e profundo,
que tinha construído a ferro e fogo ao longo da vida, sem saber muito bem como.
De lá tirei as forças para caminhar em direção ao quarto, respirar, contar a minha
esposa o que estava se passando desde o nascimento de nossa filha e me mostrar
um pouco mais estruturado para que pudéssemos enfrentar, juntos, o que viesse
pela frente.
Na verdade, queria enfrentar tudo sozinho e, talvez,
poupá-la de algo que, por mais que quisesse e imaginasse uma saída mais
heroica, não seria possível. Deparava-me com uma infantilidade que me
imobilizava diante da fantasia de poder resolver tudo sozinho, estampada mais
para esconder a profunda sensação de impotência e para amenizar o orgulho
ferido em relação a minha eventual autossuficiência do que para enfrentar a
situação de frente. Aprenderia, depois disso, a pedir ajuda a quem se
dispusesse e, principalmente, a contar mais com a protagonista desse nascimento
e desse acontecimento: minha filha.
A essa altura, minha esposa já suspeitava de algo, mas
não imaginava o que poderia ser: chorou muito, enquanto acariciava a nossa
filha ao seu lado. Olhava para ela e dizia: como? Tudo o que ela falava e que
também sentia, procurava amenizar com argumentos. Ela dizia sentir culpa em
razão de termos esperado muito tempo e estarmos com idade avançada, eu
argumentava que poderíamos tê-la tido há vinte anos, quando éramos ainda jovens
e inexperientes não tendo suporte para aguentar o que passávamos. Ela dizia
outras coisas, tentando encontrar uma responsabilidade que não existia, eu
argumentava, dizendo que havíamos sido sorteados. Lembrei-me das palavras do
médico, regida por certa estatística: “No ano passado, foram seis crianças que
recebi com trissomia, todas de mães entre 17 e 34 anos. E isso em uma cidade
pequena”. Servia-me bem essa estatística, ao menos para tentar amenizar um
sofrimento causado por uma culpa que, naquele momento, em nada ajudaria sentir.
Nem vou falar das culpas aos médicos, porque foram as
que rapidamente superamos, ao ponto de continuarmos com os mesmos até hoje.
Via, agora, na razão dos argumentos uma aliada para me manter em pé, para tentar
de algum modo conter a angústia de minha esposa e, principalmente, para
combater tudo que vinha (e como vêm coisas!) impedir o acolhimento da nossa tão
esperada filha. Assim, deixamos que o amor falasse mais alto que tudo, sendo
simplesmente pai e mãe de uma filha com um nome próprio – que depois, alguns
médicos e enfermeiros esqueciam para chamar de “downzinha” e “cardiopatazinha”,
dependendo da especialidade, numa clara falta de sensibilidade, que também
encontraria em outras famílias de crianças e jovens com trissomia – e, com o
apoio da família e dos amigos, enfrentando cada situação e comemorando cada
pequena conquista. Contudo, se alguns médicos e enfermeiros têm essa
insensibilidade, outros ainda procuram demonstrar a sua humanidade, apelando a
motivos religiosos. Algumas enfermeiras disseram-nos, quando nos viram chorar
ainda na maternidade: “crianças como essas só nascem para pais especiais como
vocês, que se amam e que poderão lhes dar uma boa família”.
Entendia o gesto de solidariedade embutido em cada
palavra, mas não nos sentíamos especiais dessa forma, ao contrário, e falamos
isso para muita gente que veio nos consolar com essa frase, o que nos
preocupava não era se seríamos ou não especiais, mas se estaríamos à altura de
ter alguém como nossa filha. Isto, sim, era o que nos pegava e nos amedrontava.
Algo que somente foi superado na convivência com ela e, gradativamente, fomos
nos sentindo mais seguros como pais, obviamente, com todas incertezas que
aturdem os espécimes desse gênero, em relação à educação, ao futuro...ah, o
futuro!
Aos poucos, minha razão e o meu inconsciente tramaram-me
peças incríveis, ajudando-me a perceber que tinha passado uma vida inteira me
preparando para esse acontecimento que vivia nesse momento, por mais que não me
sentisse preparado para tal. Vinham em minha memória as aulas de Educação
Física que ministrava para classes especiais. Os nomes das crianças com quem
trabalhei brotavam em minha cabeça, juntamente com seus rostos e com a
pergunta: onde estão Janaína, Rodrigo, José Fernandes, Manoel, dentre tantos
outros, cujos traços fisionômicos e gestualidade, se mostravam na feição de
minha filha ou, melhor, em uma imagem do que ela seria no futuro.
Algo parecido se passava com a minha esposa. Há pouco
tempo havia orientado um grupo de pais de crianças altistas, com trissomia e
outras síndromes no Centro de Estudos em Educação e Saúde da UNESP, onde atuava
como voluntária. Tinha certa experiência com esse trabalho de orientação
psicológica desde 1997. Coincidentemente, os discursos que ouvia aos poucos
ressoavam, até porque uma das funcionárias do hospital que servia o quarto em
que estávamos instalados fazia parte desse grupo e, quando se aproximava, sem
que o soubesse ativava essa poderosa memória inconsciente.
Suspeitava que minha aproximação da filosofia da
diferença e temas correlatos não teria sido por acaso, assim como a convivência
com meu supervisor de pós-doutorado que virou um grande amigo, daqueles que
escolhemos como irmão, que tem um filho com necessidades especial, com o qual
convivi por algum tempo. Nesses momentos acreditamos em tudo que queremos e que
convém, podem dizer alguns, mas também em tudo que faz algum sentido e que nos
faz sentir mais fortes, potentes e, quem sabe, a altura do que nos passa, por
mais difícil que isso seja. E, posso dizer, buscava um sentido para o que se
passava, tentando tornar útil tudo aquilo que lera, vira e experimentara. Dava-me
conta em relação ao que tentei compreender, sem muito êxito, em Deleuze (2000)
e que agora encontrava diante de mim, com um nascimento, o de minha filha: um
acontecimento. Por sua vez, essa noção me remetia à conferência proferida por
um grande amigo (o mesmo que foi meu supervisor de pós-doutorado) em um dos
eventos que organizei e que minha esposa – com mais ou menos seis meses de
gravidez – e eu ouvimos com muito encantamento como uma celebração da vida,
mesmo no momento em que tanto falava da morte (BÁRCENA, 2010).
Enquanto elaborava o luto de uma ideia de filha
convivendo com uma criança real e percebendo que esta dependia de cuidados
especiais, começava a sentir essa celebração da vida com muito mais vigor do que
qualquer representação ou norma, porque proveniente de um encontro e,
principalmente, de uma experiência com alguém que me surpreendia e, na relação
desarmada com ela, fazia me ver o quanto podia esperar dela, de seu nascimento.
Percebia, assim, o quanto me equivocara em relação ao nascimento de minha
filha, pois, a promessa de novidade que agora via era mais alvissareira do que
a de qualquer outra, implicava numa mudança efetiva se não do mundo, ao menos
minha.
***
Quando li O filho
eterno de Cristovão Tezza (2008), minha filha tinha acabado de nascer e
estávamos ainda averiguando com os cardiologistas se teria ou não que se
submeter a uma cirurgia para a correção de um defeito cardíaco congênito nas
valvas e, segundo dizem os médicos, comum em parte das crianças que nascem com
Síndrome de Down.
Não sei se essas foram imagens que me confortaram diante
de um espírito tão pouco afeito à religiosidade ou se existe uma racionalidade
outra, como depois li nas obras de Foucault (2004) sobre os estoicos. O que sei
é que tudo aquilo que estava incorporado a minha experiência me ajudaram a
enfrentar essa situação e assumir minha filha não mais como uma ideia, mas uma
criança real, que se apresentava diante de mim e, como todas as outras,
diferente. Em um único gesto, o do nascimento, minha filha me ensinou o que há
uma década vinha tentando aprender com a diferença, tarefa que desde então me
dedico todo dia, no exercício da paternidade, surpreendendo e, principalmente,
sendo surpreendido por ela.
Esse meu aprendizado se deve também à minha esposa que,
diferentemente de mim, com sua percepção aguda descobriu que é melhor deixar
que nossa filha mostre-nos as suas potencialidades, até onde pode chegar, do
que acreditar na norma instituída e nas teorias de desenvolvimento infantil,
que a concebe de modo indiferente. Diferentemente do que narrado em O Filho
Eterno de Cistovão Tezza (2008), optamos por não entrar na corrida pela
normalidade, como um déficit a ser superado em cada atividade e, enfim, chegar
a ser “normal”, talvez, neste caso e em muitos outros, podemos dizer que não é
o que queremos para ela e teremos que lutar contra aqueles que querem julgá-la
dessa forma.
Resolvemos, sob este aspecto, inverter um pouco as
regras desse jogo e olhar mais para ela do que o que se espera para uma criança
como ela ou na faixa de desenvolvimento dela, reconhecendo aí uma
potencialidade que nos indicará como e o que fazer. E, desde então, temos visto
como tem potencialidade – para usar uma expressão que alguns amigos que
trabalham com Educação Especial utilizaram na primeira vez que a viram. Isso
porque percebemos que, embora desde os dois meses de vida faça estimulação
precoce, há uma coisa que é da própria Ana Sophia: um brilho nos olhos que se
percebe pulsar a vida e uma força que se vê em cada gesto.
Se isso foi perceptível logo nos primeiros meses,
teríamos ainda muito que descobrir e o que enfrentar com ela. Às vezes, ouvindo
absurdos de pais de crianças com alguma necessidade especial que,
constantemente, nos interpelavam para dizer que tinham “uma criança igual a
essa em casa”, até que aprendemos a responder que “não, não, igual a ela não
existia, muito menos estava em casa alheia”. Outras vezes perguntavam se não
teríamos mais filhos, dizendo de sua própria experiência que só se
tranquilizaram depois que o filho ou a filha seguinte nasceu normal, sem se
importar se o assunto da normalidade nos incomodava ou não. Isso nos afastou um
pouco de reuniões de pais, pois, a conversa que se vê circular em geral nesses
ambientes é acerca da normalidade – chamam médicos e especialistas para
proferirem palestras acerca de um saber que poderá fazer com que nossos filhos
cheguem o mais próximo possível de uma linha chamada normal.
O que sentia e sinto falta é de ouvir como foram pais e
mães de crianças e jovens com necessidades especiais, a narrativa de
experiências de maternidade e paternidade reais, assim como ouvir essas mesmas
crianças e jovens, quem sabe, para conhecer melhor o mundo que vivem e a vida
que levam, como mostra brilhantemente o documentário de Evaldo Mocarzel Do luto à luta. Diferentemente de ter
buscado esse documentário como fiz com o livro de Tezza (2008), demorei muito
para assisti-lo. Fui a um congresso em que esse documentário estava sendo
apresentado em seu circuito cinematográfico e arrumei uma série de subterfúgios
para não vê-lo. Depois, criei coragem e o comprei. Ficou muito tempo guardado,
até que um dia, após ter assistido uma parte do documentário na TV, sem saber o
que era, fui assisti-lo.
O reencontro da coragem para assistir o filme ocorreu após
um momento que havia tentado mobilizar bastante essa virtude para enfrentar um
problema bem mais delicado do que os meus medos e uma situação que colocava em
risco a vida de minha filha. Ana Sophia tinha nascido com um problema cardíaco
congênito, um sopro ou, na linguagem médica, um defeito nas valvas. Minha
esposa e eu andamos de médico em médico em busca de uma resposta que indicasse
a desnecessidade de correção cirúrgica. Contudo, todos davam a resposta era
quase a mesma, a cirurgia era necessária e deveria ocorrer no quinto mês de
vida de nossa filha. Em cada vez, foi como se fosse a primeira, aquelas
palavras chegavam aos meus ouvidos em um
tom ensurdecedor, que me levavam ao desespero, e para fugir disso, punha minha
imaginação para funcionar, como faz toda criança que, ao se proteger do mundo,
cria o seu em que coisas impossíveis podem acontecer.
Gostaria de trocar de lugar com ela, mas não era
possível: a síndrome ficou uma coisa muito pequena diante da cirurgia que iria
enfrentar. Isso ocorreu no mesmo período em que recebi uma notícia profissional
das mais gratificantes: tinha conseguido uma bolsa em reconhecimento pelo meu
trabalho. Depois de muitos anos de solicitação, recebi essa notícia no momento
menos esperado e, poderia dizer com tranquilidade, prescindível. Pensava com a
indignação de sempre, sinto orgulho de ter alcançado esse mérito, mas, se fosse
possível, trocaria essa conquista profissional, que tanto busquei, por qualquer
coisa que amenizasse o sofrimento de minha filha. Contudo, nada disso era
possível, só me deu a dimensão de minha impotência sobre o arranjo dessas coisas
e que uma coisa nada tinha a ver com outra, salvo pelo fato de perceber que o
que dava valor atualmente não era mais o mesmo nem se restringia ao reconhecimento
pelo meu mérito profissional. Agora, o que estava em risco era a vida de minha
filha.
O temor em perdê-la foi algo que me acompanhou nesse
período, devo assumir, ao ponto de resistir a tudo que me afastasse muito de minha
filha, ao mesmo tempo em que as imagens que habitavam minha cabeça e tentavam
reverter o estado de impotência sentida ocupavam meus pensamentos: os problemas
profissionais ficaram pequenos. Dos problemas aos compromissos já assumidos, o
que me importava era ver minha filha bem, levando uma vida sem limitações e
livre do risco de morte, algo que fez com que redimensionasse minha vida e as
pretensões na carreira a qual havia escolhido.
Foi no vínculo que estabeleci com ela, o da paternidade
mesma, construído no dia-a-dia, que me senti mais apto para enfrentar a
situação e para confiar profundamente nela, na vontade de vida que lhe saltava
os olhos. Em contrapartida, encontrei no gesto de muitas pessoas da família, de
amigos e de colegas de trabalho de vários lugares, estados e países uma
solidariedade tamanha e sincera, que me fez voltar acreditar que, se a vida
intelectual não era mais a mesma, ainda havia nela pessoas que a habitavam. Via
se processar uma esperança na universidade e na política acadêmica, ao mesmo
tempo em que me sentida pessoalmente arrasado, limitado, mobilizando quase
todas minhas forças para estar ao lado de minha esposa e acompanhar a minha
filha.
A aflição de minha esposa e a minha eram tanta que, na
antessala de cirurgia, momentos antes de entrega-la a uma competente equipe de
cirurgiões, em São Paulo, Ana Sophia nos olhou com tanta tranquilidade,
enquanto nos debulhávamos em lágrimas, que nos trouxe uma profunda esperança na
sua recuperação. Agiu como se tudo passaria bem e a pulsão de vida que brotava
em seu olhar nos inspirou a coragem exigida para que enfrentássemos a situação.
No período em que esteve internada no Centro de Terapia Intensiva, ouvimos outras
histórias, algumas mais complicadas do que a de nossa filha, outras sem
diagnóstico, que nos fizeram olhar um pouco mais a nossa volta. Sentíamos certo
alívio por ela ter uma síndrome tão estudada e conhecida, que poderia de agora
em diante ter os mesmos problemas de todos os pais, se tudo corresse bem na
cirurgia. Efetivamente, tudo correu bem. Em poucos dias ela saiu do CTI, em
seguida ficou mais um dia no quarto e, por fim, voltou para a casa, sendo que
hoje está totalmente liberada para fazer o que toda criança faz, correr,
brincar, nadar, e como gosta de nadar.
Dessa experiência ficaram algumas marcas físicas nela: certa
resistência a hospitais e pessoas de branco. Em nós, imagens de alguém tão pequena
tendo que passar pelo que passou, as noites em claro no CTI, as crises de
abstinência de remédios e a agitação constante das noites. Desde então os
problemas passaram a ter dimensão que possuem, ao menos assim os julgo,
dando-lhes o tamanho que têm. Passei também a desempenhar várias tarefas
profissionais ao mesmo tempo e fazer as coisas com um pouco mais de presteza,
para que pudesse dedicar maior tempo a minha filha. Não que hoje ela precise
desse tempo, mas eu quero dispor-me dele para que possa acompanhar cada passo,
ver cada conquista e estar presente em sua vida, ao mesmo tempo em que
concentro minhas energias em atividades que diga respeito à experiência, à
escrita e à docência que permitam um maior engajamento ético e político.
Em relação à família, os primeiros a chegarem ao
hospital, inclusive, para ajudar nas duas primeiras semanas foram minha cunhada
e meu concunhado. Era perceptível a tensão no ar e, ao mesmo tempo, certa
alegria não desfechada. Foi minha cunhada e, depois, minha mãe que acompanharam,
depois, a saga para fazer ela mamar no peito. Quando conseguiu mamar no peito,
comemoramos como uma grande vitória, e assim para cada coisa desde então. O
primeiro passo, a primeira palavra, o primeiro dia na escola, etc. Desde então,
aprendo nessa relação com minha filha a viver a cada dia, comemorando cada
conquista e trabalhando para obtê-la, mas, principalmente, aprendo com um tempo
diverso, diferente do meu – metido em tantos afazeres e em uma lógica
produtivista da universidade – o caro valor da pausa e do ralento, numa melodia
que soa bem na medida em que se vê respeitado um ritmo.
Lembro-me quando, após alguns dias na escola, ela aprendeu
a diferença entre o rápido e o lento. Começou a cantar uma música lentamente e,
de repente, começou gritar e, depois, a cantar mais rápido, mais rápido, numa
velocidade extrema que eu mesmo desconhecia. Isso fez com que pensasse: “minha
filha estava sendo apresentada ao mundo e, sobretudo, ao tempo que o rege – o
da velocidade, e não tinha encontrado qualquer problema nisso, seu ritmo já se
misturava com o do mundo, só não sabia julgar se feliz ou infelizmente”. De
qualquer forma, essas eram as imagens de alguém que sentia vertigem da
velocidade do mundo e via que esta não poderia ser refreada por mim, nem pelas
novas gerações que lhe faziam coro e tampouco por minha filha que já começava a
adentrar a esse ritmo frenético, distorcendo a sua melodia original. Será que era mesmo original ou mais um
pressentimento que caia por terra? Não sei qual a resposta a essa pergunta, o
que sei é que minha filha cujo diagnóstico dos especialistas supunham uma
menina mais lenta, agora, estava cantando na velocidade do mundo. Comecei a ver
a captura de um tempo pelo de um mundo absolutamente adulto e massificado, para
meu desalento, porém, ainda vejo em bons e longos momentos uma temporalidade
que lhe resiste, que caracteriza a infância e que ainda não sei quanto durará.
Enquanto isso, tento dar voz a essa minha experiência da
paternidade e da relação com a diferença. Se, em outra ocasião recorri aos documentários
de Evaldo Mocarzel e ao livro de Cristovão Tezza (2008) para tentar auxiliar a
compor meu silêncio e testemunhar minha posição em relação ao assunto (PAGNI, 2010),
agora, com esse escrito vejo se abrir outra possibilidade: a de narrar minha
própria experiência, testemunhando cada pequeno acontecimento que se passa
nessa relação com minha filha e, ao mesmo tempo, engajando-me para lhe auxiliar
a ter um lugar no mundo. Mas esse lugar ela terá que conquistar, seguramente,
com meu apoio e, muito provavelmente, com meu cuidado, já que essa é minha
dívida e, hoje, meu desejo de aprender com a diferença.
Referências
AGAMBEN, G. Homo sacer III:
lo que queda de Auschwitz. 2.ed.
Valencia: Pre-textos, 2005,
V. III.
BÁRCENA,
F. A dignidade de um acontecimento.
Sobre a pedagogia da despedida. In: PAGNI, P. A.; GELAMO, R.P. Experiência,
Educação e Contemporaneidade. São Paulo/Marília: Cultura Acadêmica/Poïesis,
2010.
DELEUZE, G. Lógica do sentido. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
LYOTARD, J. F. O inumano: considerações sobre o tempo.
2.ed.
Lisboa: Editorial Estampa, 1997.
PAGNI, P.A. Um ensaio sobre a experiência, a infância
do pensamento e a ética do cuidado: pensar a diferença e a alteridade na práxis
educativa. In: KOHAN, W.O. Devir-criança da filosofia. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010.
PÉJU, P. Nacimientos. Salamanca: Ediciones Tempora, 2004.
TEZZA, C. O filho eterno. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Pedro, que texto lindo! Lindo porque profundo, profundo porque simples! simples porque simplesmente narra a experiência estonteante de nos tornarmos responsáveis por alguém que não nós mesmos: nos tornamos pais e mães e ai, meu amigo, nos transformamos, totalmente! Creio que foi ao me tornar mãe que pude entender o verdadeiro sentido da dialética! deixar de ser para ser...
ResponderExcluirVC narra a experiência e o medo de se tornar pai, não de uma criança com Síndrome de Down, mas de uma criança, no caso Ana Sophia, que, como vc mesmo diz, é única e sempre será!!! É assim que acontece, vamos aprendendo com eles mesmos o exercício da maternidade e paternidade e do AMOR! incondicional!
Que bom vc ter escrito o texto! A emoção tomou conta de mim várias vezes, porque revisitava a história de outros pais, no amor que via neles e no cuidado com seus filhos...
Vou usar muito seu texto, aqueles que se tornarão educadores precisam dele, da sensibilidade que emana dele.
obrigada, amigo!
Anna Augusta
Muito obrigado pelas palavras e pela mensagem, Anna Augusta! Como especialista que é e como sensível às questões que tratamos, sinta-se a vontade para participar, escrever e colaborar.
ResponderExcluirAbraços nossos
Professor Pedro... Que belo texto, excelente sensibilidade..tantos medos e receios que passamos no momento que nos tornamos pais.... lembrei-me de um texto lido ainda na faculdade..Bem vindo a Holanda...
ResponderExcluirGrande abraço..
Paula